Matéria do Jornal O Amigo do Povo, nº6, Julho/Agosto/Setembro de 2023.
Antonio Galego
Influenciado de um lado pelo reformismo e republicanismo burguês que domina a esquerda brasileira, e por outro pelas doutrinas neoliberais e rentistas que dominam a direita e os governos de fato desde os anos 90, o debate sobre a questão do imposto perdeu quase completamente um contraponto da crítica socialista revolucionária. Palavras de ordem como “taxação das grandes fortunas”, “redução da taxa de juros”, “impostos é roubo”, etc. se tornaram mantras das disputas entre frações burguesas do Estado.
As massas populares, ameaçadas diariamente em suas condições de vida, se veem órfãs de uma ideia que expresse o seu instinto de revolta contra as pesadas taxas que lhe rouba o Estado, ou seja, se vê desarmada de uma crítica classista ao sistema fiscal. O objetivo desse pequeno texto é retomar algumas bases teóricas desde um ponto de vista proletário e revolucionário.
O surgimento do imposto, da polícia e das classes improdutivas
A literatura socialista em geral possui uma série de estudos sobre o surgimento das sociedades de classes. Neles o papel da criação de um sistema de imposto e polícia que garanta a existência de classes e instituições sociais desvinculadas, ou melhor parasitárias, do processo produtivo é fundamental. Como disse o socialista Proudhon: “Mas se o proletário não jejua para alimentar a César, o que César comerá? E se o pobre não rasgar seu próprio manto para cobrir a nudez de César, como César se vestirá? Eis a questão, questão inevitável, que temos que resolver.”
Proudhon fala inclusive que não se deve separar a questão do imposto e da polícia. Assim, o imposto está na gênese do Estado que historicamente se fundamenta na exploração econômica e dominação política das massas trabalhadoras por uma minoria privilegiada (seja ela de escravistas, nobres ou burgueses).
O imposto é a expropriação dos trabalhadores através do Estado a serviço das classes dominantes. Está vinculado à guerra e a conquista. Não é uma riqueza “de todos”, um “fundo público” a ser redistribuído socialmente. Da mesma forma a polícia não surge pra “garantir a paz de todos” e sim proteger as classes dominantes. Essa é a origem e a natureza do imposto. É uma das formas mais primitivas de roubo do excedente do trabalho para sustentar uma classe parasitária e suas instituições.
A ilusão reformista do “Estado Protetor”
Com a expansão das formas estatais democráticas e republicanas, a ideia de que as várias instituições do Estado burguês podem ser “disputadas” em benefício das massas populares tem sido divulgada, omitindo os limites dessa disputa. O principal representante dessa ideologia democrático-burguesa no Brasil é o Partido dos Trabalhadores (PT) e seus satélites.
Reformar o sistema de tributos, defender os impostos como instrumento de transformação social e fortalecimento do Estado são alguns elementos do programa petista assumidos como “consenso” por quase todos os partidos da esquerda. Pouca ou nenhuma crítica é feita. Uma das consequências é a supervalorização do papel transformador das “políticas públicas”, da educação, da ciência e da cultura, em detrimento da organização das forças coletivas da massa trabalhadora.
Diretamente relacionado a defesa do imposto, as empresas e instituições estatais (chamadas de “públicas”) se tornaram um modelo a ser seguido pela esquerda. As empresas privadas são criticadas. Nesse maniqueísmo simplista (estatização ou privatização como fins em si mesmos) a esquerda omite a natureza de classe do Estado e suas instituições. E o pior, se exime de defender e construir instituições propriamente proletárias (conselhos, assembleias, etc.) que possam se opor às instituições burguesas sejam elas estatais ou empresariais.
A taxação das grandes fortunas e suas ilusões
Uma das principais pautas da esquerda reformista é o Imposto sobre Grandes Fortunas, ou Imposto Progressivo. A base da argumentação, além da busca da solução da “crise fiscal” do Estado, é de ordem moral: os ricos também devem pagar. Tal medida “radical” seria necessária para reduzir a desigualdades sociais. Quanta ingenuidade!
Para os marxistas reformistas a análise se baseia no Manifesto Comunista, onde Marx/Engels defendem “uma pesada tributação progressiva”. No entanto, em outros escritos Marx e outros marxistas criticam os impostos. Em “As Lutas de Classes em França”, por exemplo, Marx afirma que: “o imposto progressivo não é apenas uma medida burguesa, realizável em maior ou menor grau dentro das relações de produção existentes; era o único meio de amarrar as camadas médias da sociedade burguesa à república ‘honesta’, de reduzir a dívida do Estado, de dar cheque à maioria anti-republicana da burguesia”. Não à toa, no Fórum de Davos desse ano mais de 200 milionários lançaram um manifesto pela taxação. Mas o marxismo, por seu etapismo e estatismo, permanece ainda nessas contradições.
Por outro lado, os anarquistas foram responsáveis historicamente por uma crítica mais radical à reforma tributária, tanto teoricamente (anti-estatismo), programaticamente (negando a necessidade da “etapa democrático-burguesa”), quanto estratégica (pois negavam que as organizações operárias deveriam se envolver nas reformas burguesas do Estado).
Em seu livro “Sistema de Contradições Econômicas”, Proudhon sentencia: “O imposto dito progressivo é no máximo capaz de alimentar as tagarelices dos filantropos e que não tem valor científico algum. Com ele nada muda na jurisprudência fiscal: será sempre, como diz o provérbio, o pobre quem carregará a cangalha e sempre o rico será objeto das solicitudes do poder.”
Anos depois Neno Vasco falou sobre a diferença estratégica entre as lutas populares reivindicativas e as reformas burguesas: “As reformas tributárias e aduaneiras, os equilíbrios financeiros, etc. são coisas da alçada da burguesia e que só podem interessar os iludidos operários arrebanhados atrás de um messias político. Não quer isto dizer que devam ser desprezados os melhoramentos imediatos de situação; quer dizer que operariado não deve sair do seu terreno próprio nem correr atrás de ilusórias reformas legais, que só servem para o desorientar, para dividir e desorganizar”. Não é essa a consequência da campanha da “esquerda” pela reforma tributária e pela redução da taxa de juros?
Por fim, falemos sobre o caso argentino. A Argentina em 2022, ao passo que fazia um ajuste fiscal e acordos com o FMI, ampliou os impostos sobre grandes fortunas. Como destinação dos tributos arrecadados a maior parte (25%) vão para a exploração de gás natural. A maioria do gás está em território Mapuche! Outra parte (20%) vai para as “pequenas e médias” empresas, de até 200 funcionários! Ou seja, a taxação retorna à burguesia através de investimentos estatais para a acumulação capitalista. Poderia ser diferente num Estado burguês?
A propriedade é um roubo! O imposto é um roubo!
Naturalizar a ideia da verba estatal como um “fundo público”, ou seja, um recurso de “todos”, é uma mistificação da natureza de classe do Estado e do imposto em particular. Que o imposto roubado dos trabalhadores retorne a eles na forma de serviços públicos (precários e desumanos, digna-se de passagem) não é uma confirmação da função “democrática” do Estado, assim como o salário não é a confirmação do espírito humanista dos patrões. Os chamados “serviços públicos” (educação, saúde, cultura, ciência, justiça, polícia, etc.) tem uma função estrutural tão reprodutora do sistema capitalista quanto o salário tem na reprodução da mão de obra.
Dito isso, que os trabalhadores reivindiquem maiores salários, direitos e serviços públicos é muito bom, essas lutas devem ser organizadas e radicalizadas para que alcancem melhorias concretas na vida das massas. No entanto, nenhuma instituição burguesa ou estatal deve ser sacralizada. Por detrás do sistema de assalariamento e de “serviços públicos” está a propriedade privada dos patrões e o monopólio da violência pelo Estado, que garantem respectivamente o lucro e o recolhimento dos tributos. Lucro e imposto, duas formas distintas mas complementares de expropriação da riqueza produzida pelo trabalhador em benefício das classes dominantes e da continuidade do sistema.
Assim, ao fim e ao cabo, levar até as últimas consequências a luta pela emancipação dos trabalhadores (que surge embrionariamente nas greves e reivindicações materiais), reconhecendo que o trabalho é o criador de toda a riqueza, e que, portanto, toda essa riqueza deve ser retomada e controlada diretamente pelos trabalhadores, é um grito revolucionário não apenas contra a propriedade privada mas também contra o Estado e suas instituições. Os revolucionários devem ter a coragem de dizer e explicar aos trabalhadores tanto o porquê a “propriedade é um roubo” quanto porquê o “imposto é roubo”, e qual a relação existente entre esse duplo roubo sofrido pelos trabalhadores. Isso é o que distingue a política socialista-revolucionária da política reformista ou liberal. ■