Matéria do Jornal O Amigo do Povo, nº2, Junho/Julho/Agosto de 2022.
Por Antônio “Galego”
Fazem 9 anos de um dos eventos mais importantes na história da classe trabalhadora no Brasil nos últimos 40 anos: o levante popular de junho de 2013. Ele explicitou as contradições de classe, assim como os limites do reformismo. Quase todas as organizações socialdemocratas/comunistas assumiram uma posição contrarrevolucionária, e contribuíram para negar o levante e seus significados de diversas formas. Por outro lado, uma parte da direita assumiu elementos pontuais do levante, deturpando as suas principais características, e se aproveitou de um processo social carente de herdeiros na política hegemônica para se “revitalizar” e promover suas pautas reacionárias.
Na verdade, tanto a esquerda quanto a direita institucionais foram e são inimigas da revolta de 2013, e se beneficiam das deturpações sobre ela. Daí a importância de defender uma análise socialista revolucionária (anarquista) e demarcar, mesmo brevemente, o por que devemos reivindicar e compreender corretamente o grande levante popular de junho de 2013.
1) As raízes históricas do levante popular
Em primeiro lugar temos de situar historicamente os protestos de 2013. Os governos Lula (PT) lançaram mão de instrumentos de contenção dos movimentos sociais. Tanto macroeconômicos quanto políticos, de cooptação. A partir dos governos Dilma esses instrumentos entram em processo de deterioração. As retomadas indígenas, as greves operárias nas obras do PAC, a radicalização do movimento estudantil e do funcionalismo público (com rupturas importantes com a CUT e a UNE) prepararam em parte o terreno para a irrupção das lutas em 2013. Muitos militantes da linha de frente no levante popular foram formados nesse contexto.
Essas lutas pré-2013 estavam relacionados ao modelo de desenvolvimento capitalista aplicado pelos governos petistas: 1) desenvolvimento capitalista no campo, com o boom do agronegócio, grandes mineradoras, hidrelétricas, obras de infraestrutura, gerando maior concentração de terras e integração ao capital internacional; 2) desenvolvimento do militarismo, com criação da Força Nacional, UPPs, lei anti-drogas, invasão neocolonial no Haiti, aumento de verbas e modernização das forças repressivas; 3) As reformas neoliberais (previdenciária, trabalhista e universitária) do governo Lula-Dilma, que aprofundaram a precarização das condições de trabalho e estudo, especialmente a terceirização.
A política macroeconômica dos governos do PT (2003-2016) combinava “desenvolvimentismo” e “neoliberalismo”, através de um dos principais mecanismos de ação imperialista: o duplo mercado de trabalho, ou seja, um mercado de ocupações bem remuneradas, qualificadas, com garantias jurídicas e socialmente valorizadas, e outras ocupações desprovidas disso. Esse “mercado inferior”, que reúne a fração de classe que chamamos de proletariado marginal, teve um crescimento expressivo durante a era petista. Esse “novo” proletariado marginal possui contradições de diferentes ordens com o Estado e o sistema capitalista de forma geral.
É nesse contexto que eclodiu as lutas em 2013. Iniciaram com protestos em várias capitais contra o aumento das passagens. Eram impulsionados especialmente pelo movimento estudantil e juventude marginalizada, através de fóruns independentes das burocracias sindicais e partidárias. Em junho, com a repressão brutal aos protestos, assim como a proximidade dos megaeventos (ou seja, o modelo desenvolvimentista do PT), as manifestações se massificam e tomam o caráter de revolta popular: tendo como alvos os megaeventos e os núcleos do poder estatal, se utilizando da ação direta e autodefesa como táticas prioritárias, criando novas formas organizativas (fóruns e assembleias populares).
2) Caráter de classe, métodos e reivindicações dos protestos
É claro que um movimento que reúne milhões de pessoas nunca é homogêneo e absoluto (como sonham os autoritários). Mas podemos dizer que o levante de 2013 possuiu as seguintes características gerais:
1º) em relação à composição de classe, reuniu especialmente o proletariado marginal, e todas as demais frações de classe (proletariado industrial, dos serviços e também setores da pequena burguesia urbana e aristocracia operária);
2º) Em relação ao programa, predominaram as reivindicações por transporte, saúde e educação pública, o que mostra como as reivindicações econômicas de natureza coletiva predominam sobre a de natureza corporativa;
3º) os métodos de manifestação de rua, ocupação ou ataque à órgãos do Estado e empresas, assim como o uso da autodefesa de massas (os “black blocs”), expressam o predomínio da ação direta e métodos históricos da luta de classes que foram abandonados pela aristocracia de esquerda, aburguesada e integrada ao sistema.
Assim, a espontaneidade do levante está diretamente ligada às contradições sociais e econômicas que o produziram e as lutas que o precederam. O levante é espontâneo, mas as contradições já se acumulavam há anos. A revolta popular de 2013 expressou um conteúdo antissistêmico, anti-militarista e coletivista. Isso levou ao confronto com a política hegemônica de “esquerda” e de “direita”, e sofreu uma forte campanha de criminalização burguesa.
3) Os arrependidos de 2013: ataque a memória popular pelo reformismo
A criminalização em 2013 se transformou hoje em difamação. Os reformistas se juntaram à burguesia numa campanha para impedir a memória e o aprendizado das massas com junho de 2013. Para os partidos da ordem, negar ideologicamente o levante é fundamental para reafirmar o sistema, e para aprisionar ideologicamente as massas à pobreza política da polarização Lulismo x Bolsonarismo. Para nossos inimigos 2013 não pode ser um exemplo, pra que não haja continuadores.
Assim, os participantes de junho foram e são alvos da repressão ideológica do reformismo petista. Para isso utilizaram diferentes mentiras. A narrativa de que o impeachment e o bolsonarismo são frutos de 2013 é a principal, pra deslegitimar a insurreição e realinhar novamente ao eleitoralismo e ao Lulismo determinados setores desgarrados, especialmente a juventude.
Segundo eles os manifestantes de 2013 foram manipulados por organismos internacionais numa “guerra híbrida”. Nada falam das contradições de classe ou da burocratização dos movimentos sociais nos governos petistas. Induzem uma parcela da juventude trabalhadora a assumir um sentimento de arrependimento e de receio aos movimentos autônomos/espontâneos (a exemplo da greve dos caminhoneiros etc). Para o reformismo degenerado do PT a única ação legítima é a tutelada por eles mesmos, o resto está sempre sob a dúvida de “fazer o jogo da direita”, de “desunir a esquerda”, etc.
Na prática, o ataque à memória popular de 2013 serve aos mesmos objetivos gerais que levou o reformismo petista no processo de “redemocratização” em 1980 a rejeitar a memória da luta armada contra a ditadura, com a construção ideológica dos “guerrilheiros arrependidos”. Apesar das diferenças históricas, tanto uma como outra são utilizadas pela ala mais à direita do PT para aprofundar a integração no sistema político burguês e para combater uma potencial ação insurgente-revolucionária no Brasil.
Para os nossos dias, os anarquistas revolucionários têm uma grande responsabilidade. As contradições estruturais, enfim, seguem latentes, seguem se acumulando, e cedo ou tarde haverá uma eclosão. A realidade não pode ser apagada com discursos, assim como uma cerca não pode deter uma avalanche. Quando soar novamente a hora do combate e as massas encherem de fogo e revolta as avenidas, que os militantes e organizações populares carreguem consigo os aprendizados necessários das lutas e sofrimentos do nosso povo. ■