Estamos à beira de um golpe? Notas sobre a luta de classes no contexto pós-eleitoral

Por Antônio “Galego”.

1 – A euforia de uma parte da população pela vitória eleitoral de Lula/Alckmin (PT-PSB) no domingo durou pouco. A ressaca de segunda-feira foi acompanhada da notícia de diversos bloqueios de bolsonaristas em rodovias de vários estados do país. Ainda no domingo, algumas horas após o resultado oficial, já haviam começado os bloqueios, vindo a tona o que a propaganda Lulista tentava esconder: a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro (PL) não é a derrota da extrema-direita conservadora, ao contrário, articulada com outros fatores importantes podem gerar seu fortalecimento. Quem reduz a política à dimensão eleitoral (ou institucional) está condenado a cometer erros e cair em frustrações.

2 – Para entender esse contexto pós-eleitoral de forma correta é importante romper com os idealismos gerados pela própria polarização eleitoral e a política do medo estimulada em ambos os lados: 1) os idealismos da base bolsonarista, que acreditam numa “ameaça comunista”, que Lula é a personificação do demônio e acreditam nas condições políticas para um golpe militar; 2) ou os idealismos dos esquerdistas, que acreditam numa grande “ameaça fascista e golpista” sem levar em conta a luta de classes e o que cada candidato representa nela. Ambos acreditam na possibilidade de um golpe de Estado e desconsideram o processo real da luta de classes. Todos esses idealismos só poderiam gerar as situações mais patéticas ao longo dessa semana.

3 – Ainda que o objetivo aqui não seja uma análise das eleições em si, é importante tomar alguns dados sobre as candidaturas e dos posicionamentos das classes dominantes. Após quase 2 anos preso e impedido de participar das eleições em 2018, Lula retornou ao cenário político nacional, articulando uma frente ampla com frações estratégicas da burguesia e com importantes partidos e políticos representantes dos ricos e do imperialismo. Só ingênuos podem acreditar que isso foi por que ele “provou sua inocência”, ou pior, acreditar que foi fruto da pressão da pífia campanha “Lula livre”.

4 – Lula retorna ao cenário político sob a tutela de setores da burguesia e do imperialismo pra fazer exatamente o que está fazendo: organizar um novo bloco no poder com mais eficiência e estabilidade para a acumulação capitalista no Brasil. Que isso desagrade parcelas da burguesia rural e comercial, setores da pequena-burguesia e das forças repressivas vinculadas ao bolsonarismo, não temos dúvida. A burguesia rural (chamada de “agronegócio”) tem sido um agente central dos bloqueios de estradas, não apenas os caminhoneiros bolsonaristas. Essas serão as principais forças sociais da oposição de direita ao futuro governo Lula/Alckmin (PT-PSB). Mas não possuem força suficiente, nem contexto, para uma ruptura com a ordem democrático burguesa nem uma criminalização absoluta de Lula e do PT, que aliás tem servido de tantas formas a seus interesses de classe (e eles sabem disso).

5 – Aqui chegamos a um ponto central: quem libertou Lula, quem o elegeu e, aliás, quem liberou as rodovias, acabando com a pressão bolsonarista, foi a ação vinda de cima, de disputas e conchavos no interior das frações das classes dominantes. Desde os governos petistas (2002-2016), e em especial desde 2016, a estratégia do reformismo degenerado (Lulismo) é o aprofundamento consciente da desorganização da classe trabalhadora, destruindo a já pequena capacidade de intervenção das massas populares com independência de classe no cenário político e social. O reconhecimento público e imediato da vitória de Lula por parte da mídia burguesa (com a Rede Globo na vanguarda), da Confederação Nacional da Indústria (CNI), da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), do presidente dos EUA Joe Biden, dos presidentes de outras potências mundiais e regionais, do próprio Alto-Comando do Exército, de importantes políticos da base bolsonarista, recebendo não só o reconhecimento como o perdão de setores da elite evangélica (como o bispo Edir Macedo da Igreja Universal), isolou politicamente qualquer ameaça real de “golpismo” ou “fascismo” por parte de Bolsonaro.

6 – Diante desse contexto os fechamentos de estradas tiveram vida curta, chegaram em seu ápice na quarta-feira com mais de 250 pontos de bloqueios parciais ou totais do trânsito, em mais de 20 estados do país. A repressão policial não tardou a chegar, ainda que a Polícia Rodoviária Federal tenha sido acusada pelo ministro Alexandre de Moraes de fazer corpo mole e inclusive colaborar com os “baderneiros”. Já na terça-feira (01/11), pelo menos 16 estados e o DF anunciaram o uso da Polícia Militar para desbloquear as rodovias. Os primeiros foram os governadores Rodrigo Garcia (PSDB-SP), Claudio Castro (PL-RJ), Romeu Zema (Novo-MG), Ranolfo Vieira Júnior (PSDB-RS), Ratinho Jr. (PSD-PR) e Paulo Câmara (PSB-PE), seguidos pelos governadores de Goiás, Maranhão, DF, Mato Grosso, e outros. No final da tarde de quinta-feira, a PRF informou que apenas 2 bloqueios totais e 30 parciais ainda continuam ativos. Além disso, no feriado de quarta-feira foram realizados manifestação em frente aos quartéis pedindo “intervenção federal” e criticando o resultado das eleições. As principais ocorreram em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre, reunindo, no entanto, um número muito inferior do que atos bolsonaristas anteriores.

7 – O resultado concreto dos bloqueios de estradas, das choradeiras e missas na porta dos quartéis, está muito longe de uma “ameaça golpista”. Nenhum dos salvadores eleitos pelos manifestantes: o presidente, os generais, EUA, Deus, nenhum quis colaborar. As declarações públicas de Jair Bolsonaro (PL) para desocuparem as rodovias e respeitarem a Constituição, os gestos do governo encaminhando a transição não deixaram dúvida sobre mais um “morde e assopra” da política bolsonarista, muito inteligente aliás. O uso de táticas de ação direta para fazer “lobby parlamentar” não é uma novidade criada pela direita, a esquerda reformista já faz isso há décadas, utilizando greves, manifestações, bloqueios de ruas, para garantir negociatas e conchavos no governo. Nos últimos anos nem isso a esquerda tem feito.

8 – O objetivo era não cair sem luta, e essa tática teve pelo menos dois resultados concretos. O primeiro é garantir, mesmo com a derrota eleitoral, a posição de Bolsonaro como líder de uma “nova direita”, com algum cargo importante no PL, privilégios pessoais, etc. O segundo foi impedir uma debandada maior da base bolsonarista, agrupando-a pra “lutar” por algo, tencionando com os outros poderes da República, dando o clima do que pode ser a oposição de direita ao governo em 2023. Ainda assim a tendência é uma parte dos políticos bolsonaristas virarem a casaca, já que a ideologia conta pouco pra esses “fascistas” de ocasião e que a Frente Ampla do Lulismo é “amplíssima”, aberta à sindicalistas e à extrema-direita.

9 – Sem um risco iminente de uma ditadura militar ou de um regime fascista, por que tantos holofotes pra esses fatos? Primeiramente, para todos os partidos e frações de classes que se reuniram na Frente Ampla interessa alimentar o medo do bolsonarismo para gerar a coesão e justificação de suas políticas. Segundo, uma oposição de extrema-direita é muito melhor para o Capital e o Imperialismo do que uma oposição de esquerda como ocorreu entre 2004-2010 com a criação da Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas) na luta contra as reformas neoliberais do PT. Assim, ao passo que coloca panos quentes nas contradições internas, tenciona a Frente Ampla à direita. Infelizmente, a primeira semana pós-eleições desenhou um cenário político horrendo que pode começar em 2023: a extrema direita dominando as ruas com métodos de ação direta, a esquerda pedindo ordem e repressão aos “baderneiros”, e a classe trabalhadora absolutamente desorganizada e sem uma política própria que represente seus interesses imediatos e históricos.

10 – Enquanto os factoides de “fascismo x antifascismo” distraem nas redes sociais, a política muito real e notória de aprofundamento do autoritarismo e da exploração capitalista no Brasil se anuncia nos planos e articulações políticas do futuro governo Lula/Alckmin (PT-PSB). Os trabalhadores e revolucionários sérios precisam se preparar para a luta que virá com uma análise e uma linha corretas, sem nenhuma ilusão com o reformismo ou com o lulismo, sem agir como idiotas úteis de seus interesses. A democracia burguesa sob a qual vivemos nunca deixou de matar, explorar, cercear os direitos, torturar e encarcerar as massas populares no campo ou na cidade. É esse sistema que o Lulismo saiu vitorioso para ser um gestor eficiente e estável. Bolsonarismo e Lulismo são duas faces da dominação capitalista e imperialista no Brasil, um fortalecendo o outro, como demonstrou essa e a última eleição.

11 – Cabe um comentário final sobre alguns desbloqueios espontâneos, e sobre uma suposta necessidade de resistência “radical” ao fascismo. Foram feitos alguns desbloqueios por civis por vários motivos, no geral muito pragmáticos (conflitos comuns que ocorrem em bloqueios feitos pela esquerda também, quem já fechou uma rua sabe), em poucos casos alguma torcida ou populares desbloquearam em nome da “democracia”, no geral esses desbloqueios foram mais simbólicos, para o júbilo da esquerda nas redes sociais. Em relação a última questão já ficou claro que se baseia em uma interpretação errada da conjuntura, muitos grupos de extrema-esquerda e anarquistas tem caído nesse erro nos últimos anos, de “radicalizar” as proposições e análises dos reformistas (sobre fascismo, golpe, defesa da democracia, menos pior, fora Bolsonaro, etc.), atuando na prática à reboque da linha dos reformistas com um radicalismo verbal inócuo e sem bases concretas.

12 – O que precisamos para o próximo período é retomar coletivamente um trabalho teórico e político de fato independente, revolucionário e classista, que interprete corretamente a luta de classes e a conjuntura, retirando as lições de cada momento e cada luta, definindo as linhas prioritárias de atuação. Devemos aplicar um método materialista de mobilização do proletariado, impulsionando e apoiando a ação direta pelas reivindicações concretas das massas (greves, bloqueios e protestos por terra, trabalho, saúde, transporte, etc.). Dessa forma iremos contribuir humildemente, mas de maneira firme e consciente, para a imensa tarefa de reorganização das massas trabalhadoras em nosso país.

Nem democracia burguesa, nem ditadura militar: organizar a luta pelos direitos e pela libertação do povo!

Pela reorganização e uma via autônoma da classe trabalhadora!

Ir ao povo! Reconstruir o Socialismo Revolucionário no Brasil!

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