Matéria do Jornal O Amigo do Povo, nº4, Janeiro/Fevereiro/Março de 2023.
Por Rafael Saddi.
Este texto tem o objetivo de tratar das classes sociais no pensamento do anarquista russo Mikhail Bakunin. Trata-se de um tema muito amplo e não temos nem o estudo profundo de toda a sua obra nem o espaço necessário para desenvolvê-lo em toda a sua extensão.
Sendo assim, nos deteremos, aqui, tão somente na defesa de uma tese principal: a de que Bakunin, ao analisar a divisão ou antítese social principal em uma sociedade, compreende cada um dos polos opostos (os exploradores, de um lado, e os explorados de outro) não simplesmente como categorias meramente econômicas, isto é, não como uma classe (no sentido marxista do termo), mas como um mundo social próprio, ou seja, como duas vidas opostas, ou dois seres sociais antagônicos, formados, cada qual, por um conjunto de relações sociais múltiplas (tanto econômicas, políticas, quanto culturais).
Para Bakunin, as múltiplas forças sociais que compõem as sociedades podem, em toda a história, e em todos os países, serem divididas em dois polos antagônicos. Entre estes dois polos principais, o alto e o baixo da escala social, existem inúmeras camadas intermediárias. (ver A Ciência e a Questão Vital da Revolução e Federalismo, Socialismo e Antiteologismo).
São vários os termos que Bakunin utilizou para nomear estes dois polos antagônicos, tanto para os polos antagônicos gerais, isto é, que servem para todas as sociedades, de todos os países, ao longo de toda a história (Cidadãos e Escravos, Classes Possuidoras e Classes Despossuídas, Minoria Exploradora e Maioria Explorada, etc.), quanto para os dois polos antagônicos principais específicos das sociedades modernas (Classes Políticas e Classes Obreiras, Burguesia e Povo, Burguesia e Proletariado, Burguesia e Trabalhadores, Classes Estatistas e Massas Populares, etc.).
A definição que ele dá a cada um dos polos também apresenta diferenças em textos diversos. Podemos dizer, entretanto, que, recusando o economicismo, que identificava em Marx e seus seguidores, Bakunin pensa os polos antagônicos a partir de relações sociais múltiplas (econômicas, políticas e culturais).
Na Advertência ao Império Knuto-Germânico, por exemplo, os dois polos antagônicos principais das sociedades modernas são chamados de Burguesia e Povo.
“Denomino, pues, burgués a todo el que no es trabajador de las fábricas, de los talleres o de la tierra;”.
Como se pode notar, o conceito de Burguesia, em Bakunin, é muito mais amplo do que em Marx, assim como também o conceito de Povo ou Proletariado, entendido por ele como massa, é muito mais amplo do que o conceito de Proletariado, entendido, pelos marxistas, como classe.
Burguesia, em Bakunin, envolve não só a classe burguesa propriamente dita, mas também a nobreza (classe nobre). Como ele disse,
“(…) cuando hablo de la burguesía, comprendo igualmente con esta denominación a toda la clase nobiliaria que, habiendo perdido en todo el continente de Europa y en gran parte de Inglaterra mismo todos los rasgos distintivos que hicieron de ella antes una clase política y socialmente distinta, se ha aburguesado completamente hoy bajo la presión irresistible del movimiento capitalista actual”.
Mais ainda, Burguesia inclui também os funcionários militares, civis, judiciais, religiosos, escolares e policiais de Estado.
“Comprendo también con esa palabra la masa innumerable de los grandes y de los pequenos funcionarios militares, civiles, judiciales, religiosos, escolares y policiales de Estado, menos los simples soldados que, sin ser ellos mismos burgueses, son sin embargo la providencia visible, la única razón de ser y como los arcángeles forzados de la burguesía y del Estado, los sostenes únicos e indispensables de lo que los burgueses llaman hoy civilización”.
Vemos, assim, em primeiro lugar, que Burguesia, para Bakunin, é um conceito amplo, que envolve tanto aquilo, que para Marx, era a classe capitalista propriamente dita (classe burguesa) quanto classes pré-capitalistas (como a nobreza). Em segundo lugar, que ela não se reduz às classes (dos modos de produção capitalista ou pré-capitalistas), mas, também envolve as camadas burocráticas do Estado e da Igreja.
O mesmo pode ser visto quando Bakunin analisa o antagonismo social principal da Rússia, semi-medieval, de sua época. No texto A Ciência e a Questão Vital da Revolução, a minoria explorada ou as classes estatistas, que se encontram no alto da escala social, envolve, para além das “altas personagens da Finança, da Industria, do Negocio”, um conjunto de categorias sociais do Estado e da Igreja.
“No alto da escala situa-se o grupo pouco numeroso dos exploradores mais consumados e mais conscientes: as altas esferas governamentais, isto é, em primeiro lugar Sua Majestade o Imperador e toda a sua augusta casa, depois sua corte, seus ministros, seus pajens, seus ordenanças, todos os dignitários do exército, da administração, do clero e, em sua circunvizinhança, as altas personagens da Finança, da Indústria, do Negócio que, com a permissão do governo sob sua proteção, devoram toda a riqueza, ou melhor, toda a indigência do povo”. (BAKUNIN, A Ciência e a Questão Vital da Revolução, p. 310-311).
Os próprios termos Cidadãos, Classes Políticas ou Classes Estatistas, com os quais Bakunin definiu, em alguns dos seus escritos, o polo que se encontra no alto da escala social, revela a importância que Bakunin fornece ao Estado na definição do mundo dos exploradores.
No modo como Bakunin define o polo de baixo, o mundo dos explorados, também podemos notar esse mesmo movimento. O conceito de Povo, Massas populares ou ainda Proletariado, é, em Bakunin, amplo. Na definição dada a ele, no Advertência ao Império Knuto-Germânico, Povo envolve “a toda la masa de los obreros propiamente dichos (das fábricas, das oficinas e das terras)”.
Acusando Marx e seus seguidores de considerarem tão somente a classe proletária moderna, em ultima instância, o operário fabril, como classe revolucionária, e de se voltarem contra todo o restante da massa do povo, sobretudo dos camponeses e do que eles chamavam de lumpemproletariado, Bakunin tomava o Proletariado não como Classe, mas como Massa.
Assim, Povo ou Proletariado, para ele, incluía todos os trabalhadores das cidades e dos campos. Estes últimos, os camponeses, também eram definidos, por Bakunin, de modo amplo, envolvendo os “que cultivan con sus brazos sea su propia tierra, sea la tierra de otro”.
Como vimos, entretanto, estão excluídos do Povo todos os funcionários do Estado e da Igreja. Mas, vejamos o que Bakunin diz logo em seguida.
“Yo, que escribo, soy desgraciadamente un burgués. No obstante se podría considerar como no-burguesa y como perteneciente al proletariado a esa masa de trabajadores de la ciencia y de las artes que apenas consiguen ganar su vida y que se aplastan mutuamente en una concurrencia espantosa; su existencia es a menudo más precaria y más miserable que la de los obreros propiamente dichos. En realidad no son más que proletarioss; para hacerse tales no les falta más que una cosa, y es volverse proletarios por voluntad, por el sentimiento y por la idea. Pero es eso lo que los separa precisamente del proletariado. Son en gran parte burgueses por sus prejuicios, por sus aspiraciones y por sus esperanzas siempre ilusorias, y sobre todo por su vanidad.”.
Ele próprio, que escreve, é um burguês. A Massa (não a Aristocracia, que fique claro) de trabalhadores da ciência e das artes, no entanto, tanto são quanto não são, por certas condições, Proletárias.
Quais são as condições que fazem a Massa de trabalhadores da ciência e das artes serem parte do Proletariado? A existência precária e miserável. Como Bakunin caracterizou, trata-se de uma massa “que apenas consiguen ganar su vida”, suas condições de existência são, frequentemente, “más precaria y más miserable” que a das classes operárias.
E quais são as condições que fazem com que ela não seja parte do Proletariado? O modo de pensar, de sentir, suas vontades, suas ideias. Nisto, essa massa de trabalhadores das ciências e das artes é burguesa e não proletária.
Assim, temos que, para Bakunin, o Povo, e podemos dizer o mesmo da Burguesia, isto é, cada um dos polos ou mundos opostos, é formado não só por um conjunto de condições materiais – econômicas e políticas – específicas, mas envolve também uma maneira particular de pensar e de sentir (que são também, para Bakunin, materiais).
Estamos falando aqui de Burguesia e Proletariado não como duas classes, no sentido marxista. Estamos falando de Burguesia e Proletariado como dois mundos sociais opostos, como dois modos de ser, como duas vidas antagônicas. O sentido mais profundo disso, porém, teremos que desenvolver em uma segunda parte deste texto. ■