As Classes Sociais em M. Bakunin [Parte 2]

Matéria do Jornal O Amigo do Povo, nº5, Abril/Maio/Junho de 2023.

Rafael Saddi.

Na primeira parte deste texto, defendemos que Bakunin percebeu que, ao longo da história humana, as sociedades se dividiram em duas categorias principais antagônicas: uma minoria de exploradores e uma grande massa de explorados. Que estas duas categorias formam dois mundos, duas vidas, dois seres sociais antagônicos.

Assim, para ele, o ser é o que ele vive. E cada ser individual vive sua vida não no vazio, no abstrato, mas em determinadas condições de existência. Cada mundo social (o mundo burguês ou o mundo operário, por exemplo) é formado por um conjunto de condições e hábitos de vida, ou em outras palavras, pela totalidade das relações sociais múltiplas e, ao mesmo tempo, regularmente convergentes que abrangem toda a vida real dos indivíduos que dele participam. Estas relações sociais (ou condições e hábitos de vida) são econômicas, sem dúvida, se distinguindo, para citar tão somente dois exemplos, em termos de ocupação (o trabalho muscular do operário x o trabalho nervoso e intelectual do burguês) e de fortuna (a abundância, a riqueza da burguesia x a miséria e até mesmo a fome do povo). Mas, não são somente econômicas, envolvendo o conjunto de relações sociais, a totalidade de condições e hábitos de vida que formam aquele mundo social, isto é, um modo específico de ser, uma maneira especial de existir, o que inclui também maneiras de sentir, pensar e agir. Ao falar da vida dos revolucionários doutrinários, Bakunin afirma:

“Eles foram conduzidos à consciência revolucionária não pela vida, mas pelo pensamento a despeito de suas condições de existência. Comparada à vida insuportável de milhões de pessoas, a deles é boa e fácil. Mesmo a realidade estatista tão dura e tão cruel para o povo, toca-os de uma maneira muito mais amena e mais suave. Sua vida choca-se assaz raramente com circunstâncias, fatos da natureza a suscitar no indivíduo um ódio irredutível e uma incansável necessidade de destruir. Sua paixão revolucionária é sobretudo abstrata, cerebral, e é raramente séria”.

Temos acima a essência do método materialista bakuninista, que vai da vida para o pensamento. Somada a muitas outras passagens, podemos resumir seu método do seguinte modo: 1) VIDA; 2) INSTINTO; 3) PENSAMENTO. Existe a vida, a vida real, formada por um conjunto de condições de existência, condições e hábitos de vida, ou ainda, por um conjunto de relações sociais múltiplas, porém convergentes em cada mundo social (o mundo burguês ou o mundo operário). É na vida real que o indivíduo desenvolve suas necessidades vitais, ou instintivas.

Essas necessidades vitais ou instintivas são as necessidades mais profundas do seu ser, posto que correspondem diretamente ao que ele de fato vive, ao que ele sofre na própria pele. Todas as condições de sua vida os levam a esse querer. Elas não são ainda o seu pensamento, mas seus instintos. Não são pré-meditadas, pensadas, nem necessariamente conscientes. Trata-se de um querer vital, instintivo, produzido diretamente por aquilo que ele vive de fato em tais condições e não em outras. São muito mais profundas, muito mais potentes, e muito mais verdadeiras, do que as necessidades do seu pensamento.

Assim, todo aquele que vive em condições de miséria e opressão deseja, por instinto, ainda que não por consciência, se libertar destas condições. A grande massa operária, “quaisquer que sejam os preconceitos políticos e religiosos que se buscou e, inclusive, que se conseguiu em parte fazer prevalecer em sua consciência, é socialista sem sabê-lo; ela é, no âmago de seu instinto e pela própria força de sua posição, mais seriamente, mais realmente socialista do que o são todos os socialistas científicos e burgueses juntos. Ela o é por todas as condições de sua existência material, por todas as necessidades do seu ser, enquanto estes últimos, só o são pelas necessidades de seu pensamento; e, na vida real, as necessidades do ser exercem sempre uma força bem mais forte do que aquelas do pensamento, o pensamento sendo aqui, como em toda parte e sempre, a expressão do ser, o reflexo de seus desenvolvimentos sucessivos, mas nunca seu princípio. O que falta aos operários não é a realidade, a necessidade real das aspirações socialistas, é apenas o pensamento socialista.” (A Política da Internacional).

O operário é e não sabe. O burguês sabe, mas não é. Qual é melhor? Ser. Pode-se sempre passar da vida para o pensamento, mas partir da ideia para chegar à vida é impossível. Em resumo, o mundo burguês é formado pela totalidade das relações sociais que formam a vida burguesa, de modo que a maneira de ser, de existir, de querer, dos indivíduos burgueses são opostas ao modo de ser, existir, querer e agir do povo. São burgueses não simplesmente os donos dos meios de produção, mas todos aqueles que vivem uma vida burguesa, isto é, que detém os privilégios da divisão social, tendo uma vida “boa e fácil” se comparada à vida insuportável das massas populares. São operários, “operários sérios”, como dizia Bakunin, não todo aquele que vende a sua força de trabalho em troca de um salário, mas todos aqueles que “são realmente esmagados pelo peso do trabalho; todos aqueles cuja posição é tão precária e tão miserável que nenhum deles, a não ser sob circunstâncias completamente extraordinárias, podem nem ao menos pensar em conquistar para si mesmo, e apenas para si mesmo, nas condições econômicas e no meio social atual, uma posição melhor; tornar-se, por exemplo, um patrão ou um conselheiro de Estado”. (A Política da Internacional).

Temos dois seres opostos, inclusive nos corpos físicos, inclusive em seus desejos mais profundos, em suas paixões, ainda que possam supostamente concordarem em pensamento. Eis que somente um deles pode almejar de fato, em todas as necessidades do seu ser, com todas as suas consequências, a revolução destrutiva que produzirá a sua própria emancipação. ■

Leia também: As Classes Sociais em M. Bakunin [Parte 1]

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