Matéria do Jornal O Amigo do Povo, nº5, Abril/Maio/Junho de 2023.
Anarquistas em Dourados.
No dia 3 de março, mais uma parte de Laranjeira Nhanderu, território Guarani Kaiowá em Rio Brilhante, Mato Grosso do Sul (MS), foi retomado com a força das rezas e dos encantados. A retomada foi batizada de Yvyrapygue, “árvore do tempo das origens”. Junto aos rezadores e rezadoras, a comunidade caminhou sob a madrugada desde a pequena faixa de 30 hectares de mata ciliar onde habitam desde a primeira retomada, em 2007, na direção da sede da fazenda que incide sobre a Terra Indígena e do descampado de soja recém-colhida, onde levantaram os primeiros barracos de lona.
No raiar do dia, policiais civis e militares se deslocaram para ameaçar e forçar um despejo ilegal – sem mandado –, atuando mais uma vez como seguranças privados dos latifundiários e em benefício da expansão da soja. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) foi impedida de ingressar na retomada pela polícia. Como resultado da violência policial, três lideranças indígenas Guarani Kaiowá foram presas: Mboy Jeguá, conselheira da Kunhangue Aty Guasu; Ava Rendy, conselheiro da Aty Guasu; e Ava Jeguaka, conselheiro da Retomada Aty Jovem. As raízes do tekoha, entretanto, permanecem irremovíveis. O tekoha Laranjeira Nhanderu faz parte da Terra Indígena Brilhantepeguá, em fase de identificação para demarcação e homologação.
Ainda em 2007, após inúmeros ataques de seguranças privados e dos fazendeiros do local, é aberto um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o MPF e a FUNAI, que estabelecia a obrigação da entrega de relatórios de identificação e delimitação de Terras Indígenas no MS, incluindo Laranjeira Nhanderu, com o prazo máximo do dia 30 de junho de 2009. Em 2009, no entanto, o que ocorre é um despejo, obrigado a comunidade a viver na beira da estrada por 1 ano e 8 meses. Em 2011 a comunidade retorna para a área de floresta e em 2018 retomada mais uma parte do território ancestral. Em 26 de fevereiro de 2022, ocorre novo avanço da retomada através da ocupação de área da Fazenda do Inho que está sobreposta à Terra Indígena, processo que resulta em despejo ilegal e em brutal repressão em ação combinada entre Estado, latifúndio e a defesa do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), que ameaça deslocar centenas de assentados para a área da fazenda. A fazenda é propriedade de Raul das Neves Júnior, filho de Raul das Neves (“Portuga”). O primeiro é dirigente municipal do Partido dos Trabalhadores (PT) de Rio Brilhante e foi recentemente defendido por Zeca do PT, que se posicionou publicamente a favor do latifúndio e contra os povos indígenas, desvelando a verdadeira face de seu partido.
A circunstância revelou a relação direta entre os interesses de latifundiários e das cadeias de exportação de commodities com o despejo e as práticas insidiosas dos políticos e fazendeiros da região. O despejo ilegal ocorrido em 2022 contra Laranjeira Nhanderu inaugurou um ano de massacres e execuções, mas também a intensificação das resistências indígenas: após o assassinato do jovem Guarani Kaiowá Alex Lopes, o tekoha Jopara foi retomado em Coronel Sapucaia (MS); após o massacre de Guapo’y (Amambai/MS) e o assassinato de Vitor Fernandes Kaiowá, o território Guapo’y Mirin Tujury foi novamente retomado, assim como a retomada de Kurupi em Naviraí (MS) após ataques combinados entre polícia, latifundiários e pistoleiros. O ano se encerra com o assassinato brutal da rezadora (nhandesy) Estela Vera, que resistia ao avanço dos arrendamentos contra a retomada de Yvy Katu, em Japorã (MS).
Finalmente, no dia 3 de março de 2023, Laranjeira Nhanderu avança sobre a mesma área retomada no ano anterior, desta vez garantindo sua permanência, porém com o saldo de três prisões ilegais.
Retomada firme como tronco de aroeira
A retomada de Yvyrapygue irrompe na primeira noite sem nuvens de semanas de chuva no MS. Mais um passo foi dado na recuperação do território ancestral de Laranjeira Nhanderu, caminho comemorado por Seu Olímpio, rezador (nhanderu) Kaiowá de 86 anos que foi o primeiro alvo da Polícia Militar na tentativa de despejo ilegal. A ação dos três presos impediu que o rezador fosse levado. Há meses, a comunidade de Laranjeira Nhanderu vinha denunciando os ataques químicos, o envenenamento e o desvio do curso dos rios e córregos circundantes e que atravessam o Tekoha. Distintos problemas de saúde vinham sendo relatados por conta do consumo de águas contaminadas por agrotóxicos da Fazenda do Inho. Ao mesmo tempo, a comunidade, espremida na área de mata e impedida de plantar, enfrentava dificuldades para a produção de seus próprios alimentos, cercados por um mar de soja e máquinas agrícolas.
A prisão das três lideranças indígenas Guarani Kaiowá é simbólica, considerando ainda que cada um faz parte de um conselho de base distinto das estruturas máximas de decisão de seu povo. Presenciamos uma nova ofensiva latifundiária (e) Estatal-empresarial constatada na sequência de despejos ilegais, massacres e prisões/criminalizações contra os povos Guarani e Kaiowá. É um novo período de saque colonial para ampliar a acumulação capitalista e integrar os territórios ao mercado global.
Os governos de turno mudam, mas o extrativismo monocultor, as concessões e umbilical relação do Estado com o latifúndio e os herdeiros da colonização permanece intacta. A repressão contra a retomada de Yvyrapygue no dia 3 de março deste ano foi aplaudida de pé pelo governo de Eduardo Riedel (PSDB), intimamente vinculado ao Programa Nacional de Crédito Fundiário. Antonio Carlos Videira, secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública do MS, novamente mancha suas mãos com sangue, após comandar o massacre de Amambai em 2022. A liberação das lideranças a partir da audiência de custódia, após um dia e uma noite na delegacia, não atenua o acontecimento.
No retorno das lideranças presas ao Tekoha recebidas pelas rezas das nhandesy e nhanderu, em meio a efetivação da perícia antropológica em curso. Dessa vez, a nova retomada de Laranjeira Nhanderu permaneceu de pé, como raízes de Aroeira. Nos dias seguintes, a sede da fazenda foi retomada e o território está atualmente em poder Guarani Kaiowá, com a força das rezas e flechas que miram contra o poder do latifúndio. ■