De onde viemos e para onde vamos: as rupturas do Anarquismo Militante no Brasil

Publicada no Jornal O Amigo do Povo, nº10, Agosto/Setembro/Outubro de 2024.

Jiren Sama.

Foto: Influência dos anarquistas na criação do MNCR visto nas bandeiras antigas do MNCR no Sul do Brasil.

O anarquismo brasileiro perdeu influência sobre as massas populares com a decadência e, posteriormente, o fim do sindicalismo revolucionário no Brasil entre as décadas de 1920 e 1930. Esse sindicalismo já tinha certas limitações quando comparado ao modelo da AIT histórica e sua relação com a Aliança de Mikhail Bakunin. As limitações podem ser resumidas ao purismo, apoliticismo e falta de leitura da realidade do Brasil, além da centralidade na organização anarquista. O que restou do anarquismo no Brasil, por mais de meio século, foram pequenas iniciativas de propagandistas, educacionistas e memorialistas de grupos anarcocomunistas, compostos por uma mescla de velha geração de anarquistas e o contato com jovens universitários e punks, majoritariamente da pequena burguesia.

Entre 1995 e 1996, através dos contatos entre militantes anarquistas do Brasil e a Federação Anarquista Uruguaia (FAU), surge um novo momento para o anarquismo no Brasil, culminando com a criação da Organização Socialista Libertária (OSL) em 1997 e, posteriormente, do Fórum do Anarquismo Organizado (FAO) em 2000. Apesar dos limites e da falta de unidade teórica e estratégica de alguns grupos locais, foi nesse contexto que o anarquismo brasileiro voltou a ter uma pequena expressão na luta de classes. Destacam-se a atuação da Federação Anarquista Gaúcha (FAG) e, posteriormente, do Coletivo Pró-organização Anarquista de Goiás (COPOAG), com sua atuação entre os catadores no MNCR, e da OSL-RJ (futura UNIPA), com ocupações urbanas e movimentos secundaristas na periferia.

Das iniciativas que se destacavam na luta de classes no começo dos anos 2000, a atuação da FAG perdeu atuação entre os catadores e outros movimentos sociais, adotando uma guinada ao pós-estruturalismo. O COPOAG, que era bakuninista, acabou em 2008. A única organização que continuou avançando, tanto na teoria quanto na prática, foi o grupo do RJ, que se tornou a UNIPA. Já nessa altura, a UNIPA vinha debatendo a importância de construir uma teoria revolucionária através do pensamento de Bakunin, criticando o individualismo e destacando a importância da atuação estratégica, como no debate entre CONLUTAS e INTERSINDICAL que existia no FAO. Nesse sentido, a UNIPA rompeu com o FAO e se lançou como uma organização nacional, criticando o revisionismo e o ecletismo.

A UNIPA, que era um grupo local do RJ até 2007, devido à sua atuação mais acertada na conjuntura nacional de degeneração da esquerda com os governos petistas, como no bloco revolucionário na Conlutas e no impulsionamento de uma tendência combativa no movimento estudantil com a RECC, teve um crescimento quantitativo e qualitativo relativamente grande nos anos de 2010, construindo núcleos no DF, CE, SC, GO, MS, entre outros. Enquanto isso, o FAO, que se tornou a Coordenação Anarquista Brasileira (CAB), apesar do crescimento, pouco mudou em termos de unidade estratégica e linha de massa, muitas vezes atuando como linha auxiliar do reformismo ou praticando assistencialismo nos movimentos sociais, resultando em menor influência na luta de classes.

Em 2013, com o levante de junho e o crescimento de sua influência em diversas cidades, a UNIPA contribuiu com a chamada do ENOPES e a reconstrução nacional da FOB, tornando-se uma referência de tendência classista no Brasil, principalmente no movimento estudantil com a RECC e na educação básica com a ORC. Houve um aumento significativo da participação dos bakuninistas na luta de classes, como nas ocupações secundaristas de 2015 e nas universidades em 2016.

A UNIPA, que se firmou como o único bastião do anarquismo revolucionário classista no Brasil durante os governos petistas (2003-2016), começou a cometer seus primeiros equívocos a partir do impeachment de Dilma, ao aderir à narrativa de golpe e, consequentemente, favorecer a luta contra o “golpismo” do PT e a defesa da democracia burguesa. Isso pode ser explicado, em parte, pela contradição de seu crescimento ter ocorrido em setores intermediários, como o movimento estudantil das universidades federais e o funcionalismo público. Enquanto isso, a CAB se perdia em narrativas social-democratas e identitárias, tendo pouca influência na luta de classes.

Após se perder na disputa conceitual com os reformistas após o impeachment de Dilma, a única organização bakuninista do mundo também não compreendeu bem a mudança de contexto e o refluxo das lutas pós-2016. Mesmo em uma nova conjuntura de governos de direita e de refluxo de luta, ajudou a convocar o II ENOPES, com uma proposta descontextualizada da Europa Ocidental dos anarco-sindicalistas da CIT com a criação dos SIGA’s, sindicatos paralelos, rompendo com o único modelo que estava dando certo: as tendências classistas e disciplinadas. Assim, criaram sindicatos livres voltados principalmente para libertários e revolucionários doutrinários, centrando-se apenas na agitação e propaganda, como os modelos ultrapassados dos sindicatos de porta de fábrica do século XX.

A UNIPA/FOB continuou a apresentar erros de leitura de contexto e promovendo mudanças estruturais apressadas e equivocadas e com isso várias divergências internas surgiram, principalmente sobre questões como o “Golpe”, “Fora Bolsonaro”, “Identitarismo” e a política do “fique em casa”. Nesse contexto, entre 2021-2023, houve muitas rupturas na FOB/UNIPA, algumas públicas, outras não. Na CAB, também houve divergências sobre duas questões principais: o avanço da organização nacional com unidade política e estratégica e a crítica ao liberalismo/identitarismo, que culminaram em um racha, principalmente das organizações do sudeste da CAB, que formaram a nova OSL em 2023.

Com todas essas mudanças de conjuntura nos últimos anos – governos de direita, a pandemia e a volta do governo Lula, ainda mais burguês – criaram-se cisões que hoje dividem o anarquismo militante do Brasil em quatro linhas principais: CAB, OSL, UNIPA/FOB e as dissidências da UNIPA/FOB, como o GLP/Jornal Amigo do Povo, Ofensiva Revolucionária, entre outros.

Nossa humilde posição, fruto dessas rupturas e de mais de 20 anos de militância, apesar de não sermos hoje um grupo anarquista, mas sim de militantes classistas, é sintetizada em avançar onde a UNIPA histórica (2003-2016) não conseguiu. Queremos dar um salto quantitativo e qualitativo não só com setores intermediários, mas principalmente com setores estratégicos e com o proletariado marginal, continuando com uma militância disciplinada e com unidade teórica e estratégica, como legado de Bakunin e Makhno. Devemos ir ao povo e continuar lutando pela revolução social. ■

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* Para leitura complementar, ler o documento “O Futuro de Nossa Corrente”, no site do jornal.

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