Comunicado nº3 do Grupo Libertação Popular – GLP, Brasil, dezembro de 2024.
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Há uma nova tentativa de reviver a polarização eleitoral entre o Lulismo e o Bolsonarismo, sustentada pelo apoio das instituições burguesas. Na semana de 17 de novembro toda a mídia burguesa foi tomada por notícias sobre a descoberta pela Polícia Federal de um “plano de golpe” em 2022 que envolvia as altas cúpulas militares para impedir a posse do novo governo, na deslegitimação do processo eleitoral e no possível assassinato ou prisão de Lula, Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes.
Diante de tais denúncias, qual deve ser a análise e a posição dos revolucionários e militantes classistas?
Primeiramente, é básico e fundamental manter a desconfiança e o pensamento crítico frente aos discursos ideológicos dos órgãos que dirigem toda a trama investigativa e punitiva: a Polícia Federal (PF) e o Superior Tribunal Federal (STF). Tais órgãos sempre foram conhecidos e odiados pela manutenção da ordem burguesa e repressiva, no julgamento e aplicação de medidas contrárias às massas trabalhadoras. Essa premissa inicial não retira a gravidade do ocorrido, mas deve retirar toda a ingenuidade de ativistas e organizações na legitimação das análises e soluções pregadas por essas instituições burguesas. De um ponto de vista classista-revolucionário as massas populares não podem ficar à reboque da “política democrática” da PF e STF.
Segundo, existe um problema estrutural no regime democrático-burguês brasileiro que o torna objeto, permanentemente, não apenas de chantagens autoritárias das Forças Armadas em nível político-eleitoral, mas principalmente de uma realidade diária de tirania das forças policiais e jurídicas contra as massas marginalizadas em seus locais de moradia e trabalho. As mortes brutais pelas mãos da polícia que repercutiram nos últimos dias em todo Brasil, a aprovação da medida de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) pelo governo Lula durante o G20, a aprovação de PLs na Câmara dos Deputados que criminalizam os movimentos populares, o anúncio do Pacotaço de Cortes, são alguns exemplos da negação de direitos básicos que avança a olhos nus contrastando com o circo democrático da PF e STF. O proletariado marginal, que representa 70% da classe trabalhadora, é acossado pela violência policial e pela escravidão patronal diariamente, sob o silêncio cúmplice das burocracias sindicais e partidárias muito preocupada agora com a “democracia”. É isso que as instituições burguesas chamam de democracia no Brasil.
O Estado democrático brasileiro, longe de ser um defensor das massas, serve às classes dominantes. Na superfície, ele promove direitos e liberdades para uma pequena elite privilegiada, enquanto mantém a exploração e a violência estrutural contra as amplas massas como seu aspecto essencial. Por isso, as massas populares nunca tiveram, e ainda não têm, uma democracia a defender. Ao contrário disso, tem um ajuste fiscal e um estado de exceção que o explora e oprime diariamente e muito concretamente sendo gerenciado por um governo de esquerda.
A transição da ditadura para a democracia burguesa foi marcada pela conciliação (lei de anistia, etc.) com os militares golpistas e reacionários. Após a ditadura não houve limpa nas Forças Armadas nem restruturação da doutrina militar reacionária e pró-imperialista. Os setores militares, empresariais e políticos golpistas sempre estiveram aí, e, ao contrário do que se pensa, estão sendo diariamente fortalecidos pelos políticos burgueses de direita e de esquerda. São exemplos disso: a política de encarceramento em massa, a ocupação colonial no Haiti, a lei antiterrorista, a criminalização dos movimentos sociais e sindicais, a militarização de escolas, a valorização e glamourização profissional das carreiras policiais, militares e jurídicas, etc.
Bolsonaro já tinha reverenciado o torturador Ulstra, ameaçado “metralhar os vermelhos”, defendido que a única solução do Brasil seria uma guerra civil, e nada disso o impediu de se tornar presidente. Um escândalo envolvendo um grupo de empresários, entre eles o dono da Havan, debatendo a possibilidade de um golpe de Estado também foi arquivado por Alexandre de Morais em 2023. O que teria mudado agora?
“É preciso que tudo mude, para que tudo fique como está”, disse o romancista italiano Giuseppe di Lampedusa. Criado e dirigido pelas instituições burguesas, o atual espetáculo “antigolpista” e “antifascista” revela o interesse de setores da burguesia e da direita tradicional, aliadas ao imperialismo (EUA, UE e China), em excluir Bolsonaro do cenário político. Para esses setores, Bolsonaro é visto como uma ameaça à estabilidade política, institucional e econômica necessária à preservação de seus interesses de classe.
Esse interesse não é novo, ficou evidente na absolvição jurídica de Lula e depois na sua vitória eleitoral, assim como posterior inelegibilidade de Bolsonaro. Isso se intensificou com os resultados das eleições municipais no Brasil e a vitória de Trump nos Estados Unidos. A prisão de Bolsonaro pode ser mais um capítulo dessa polarização eleitoral burguesa, mas de forma alguma tem relação direta com as demandas concretas (mesmo democráticas!) das massas populares no Brasil.
Só a ignorância ou o oportunismo político típicos do Lulismo poderiam sustentar, ademais, que a prisão de Bolsonaro e meia de dúzia de generais, poderiam “derrotar a extrema direita” e as tentações ideológicas e nostalgias golpistas nas Forças Armadas. Ao contrário disso, nada de sério e minimamente estrutural se pretende fazer, muito possivelmente o efeito será o contrário, o fortalecimento e mutação da extrema-direita através de novas lideranças e partidos, com a transformação de Bolsonaro em “herói”, se é que chegará a ser preso.
Diante de todo esse cenário, os movimentos governistas Brasil Popular e Povo Sem Medo, juntamente com todas as burocracias sindicais e partidárias de esquerda, sendo seguidos infelizmente por organizações antigovernistas como CSP-Conlutas, convocaram para o próximo dia 10 de dezembro atos em todo o país “contra a anistia” e “golpistas na cadeia”, se colocando na prática como forças auxiliares das investigações encaminhadas pelas instituições burguesas, Polícia Federal e Superior Tribunal Federal.
Essas organizações pretendem revitalizar o Lulismo e recentralizar o movimento de massas sob a ameaça do fantasma do “fascismo”, silenciando vergonhosamente sobre todos os fascistas, coronelistas e assassinos no atual governo federal, a começar pelo vice-presidente. Pior do que isso, o que está em jogo não é apenas submeter o movimento de massas ao Lulismo, mas fundamentalmente submetê-lo às disputas no interior da direita, particularmente aos objetivos da “direita tradicional”, que se apresenta como “democrática” e “racional”, mas igualmente militarista, latifundiária e burguesa, uma autêntica representante do capital e da exploração das massas.
O resultado mais nefasto e evidente para a luta de classes é o desvio da atenção das massas populares para as poucas, mas importantes, lutas que estão emergindo. O foco das demandas concretas do povo, como a luta contra a escala 6×1, por aumentos salariais, contra a violência policial e contra mais uma etapa do ajuste fiscal decorrente do Novo Arcabouço Fiscal — incluindo o Pacote de Cortes em direitos sociais e trabalhistas que afeta o aumento do salário mínimo, o abono salarial, o BPC, o Bolsa Família, programas educacionais, entre outros —, está sendo deslocado.
Essa manobra distracionista dos partidos e movimentos sociais governistas busca afastar o foco das pautas materiais e classistas, desviando a luta para um campo simbólico e eleitoral que não atende aos interesses populares. Todo o circo está montado para manter tudo como está, apenas mudando algumas peças na superfície da política burguesa, com zero alterações na redistribuição da renda e do poder global na luta de classes, inclusive com zero alterações em futuras “ameaças golpistas”. A consequência nefasta da política governista é distrair e desorientar os lutadores e as organizações populares de suas pautas centrais: as reivindicações materiais, econômicas e sociais das massas, as únicas com potencial de unir os explorados contra seus inimigos de classes, em especial contra o governo burguês de Lula-Alckmin.
Não apoiamos a corja bolsonarista, nem ignoramos as intenções golpistas, veladas ou explícitas, de seus setores, tais como as palavras de ordem pró-intervenção militar. Tampouco confiamos que o atual espetáculo político e midiático tenha qualquer intenção de defender de fato os interesses democráticos das massas populares ou de promover justiça. Assim como não entendemos que houve “justiça” no impeachment de Dilma, na prisão de Lula ou em sua posterior absolvição e reeleição. Não é a justiça ou a democracia em abstrato (como “valor universal”) que guiam os julgamentos desses órgãos do Estado, mas uma justiça e uma democracia de classe, voltada à proteção dos interesses da classe burguesa.
Por fim, por que os lutadores classistas e revolucionários não devem cair na chantagem da “ameaça de golpe” feita pelo Lulismo e pelas instituições burguesas?
A luta de classes e a lógica do capital determinam as formas de poder. Hoje, sob o governo Lula-Alckmin, a correlação de forças está amplamente favorável às classes dominantes. A possibilidade de um golpe, em um país dependente como o Brasil, requer o apoio da grande burguesia e do imperialismo, o que, no momento, não é necessário para seus interesses. O antagonismo entre “democracia” e “ditadura” é falso no contexto atual do regime político burguês brasileiro, que combina esses elementos conforme sua conveniência. Por isso, a existência de setores golpistas e autoritários (que continuarão existindo nas Forças Armadas, partidos burgueses ou inclusive na base do governo Lula) não significa uma ameaça concreta de golpe quando isso não corresponde às necessidades e condições concretas da luta de classes. Por isso o plano de golpe não se consumou. Por outro lado, a agitação permanente, inconsequente e oportunista da “ameaça golpista e fascista” é, certamente, um espantalho político com excelentes frutos eleitorais.
Há algumas semanas os trabalhadores começaram a esboçar uma transição da defensiva passiva para uma defensiva ativa, como demonstrada pelo potencial da luta contra a jornada 6×1 e pela indignação gerada contra o Pacote de Cortes. Na contramão da luta classista a esquerda lulista e reformista aproveita o momento para blindar o Governo e mobilizar os trabalhadores sob a égide da burguesia “progressista”.
Nosso compromisso classista e nossa luta ideológica não devem ceder às pressões do momento. É imperativo manter a independência da classe trabalhadora frente à polarização burguesa entre Lulismo e Bolsonarismo, não apenas em discursos mas em ações e atitudes concretas. Por isso não sairemos às ruas dia 10 de dezembro para apoiar essa farsa. Dialogaremos com os camaradas e trabalhadores da base sobre nossas concepções, respeitando as opiniões diferentes. Os trabalhadores precisam deixar de ser massa de manobra, organizando-se para lutar por suas pautas materiais, econômicas e sociais, bem como por seus direitos políticos e democráticos de reunião, expressão e manifestação, que são sistematicamente negados pelo Estado e pelo Capital.
Como afirmou o grande revolucionário socialista Mikhail Bakunin há mais de um século atrás: os trabalhadores devem se separar de toda política burguesa e parlamentar, por mais “vermelha” que pareça. Só assim poderão construir, a partir de suas lutas e organizações, uma verdadeira política independente e revolucionária, fundamentada em seus próprios interesses de classe.