Publicado no Jornal O Amigo do Povo, nº13, Maio/Junho/Julho de 2025.
Jiren D.

Em maio de 2018, o Brasil parou. A paralisação dos caminhoneiros, que bloqueou estradas, interrompeu abastecimentos e causou impactos econômicos profundos, foi mais que um protesto contra o preço do diesel: foi uma explosão do instinto de revolta das massas precarizadas. Nesse levante, vislumbrou-se um novo ciclo de lutas — marcado pela espontaneidade, autonomia e ação direta — que ultrapassa as amarras do sindicalismo de Estado e dos partidos tradicionais.
A revolta não surgiu do nada. Ela emergiu do acúmulo de insatisfações provocadas por décadas de neoliberalismo cruel, por governos servis à burguesia nacional e internacional, e por uma estrutura sindical burocrática divorciada dos trabalhadores. Na greve, viu-se a negação explícita do sindicato como ferramenta de luta. Os próprios caminhoneiros expulsaram os sindicalistas que tentaram se aproximar, desnudando sua função real: servir de freio, de braço do governo na repressão, assinando acordos fajutos enquanto a base queimava de indignação.
A paralisação se articulou à revelia das estruturas formais. Foi horizontal, descentralizada, organizada via WhatsApp, nos postos de gasolina, nos acostamentos, nas conversas de estrada. Ali, onde a sociabilidade real acontece, germinou a luta. Sem dirigentes oficiais, sem mandatos. Sem patrões e sem partidos. Foi o povo em movimento, com todos os limites e contradições que esse movimento carrega.
Ao lado dos caminhoneiros, surgiram motoristas de van, motoboys, trabalhadores de aplicativo. Todos precarizados, todas vítimas do mesmo sistema. Unidos pela dor comum, construíram uma solidariedade de classe concreta e viva, que rompeu as fronteiras da representação política. A ação direta — bloqueios, piquetes, paralisações — mostrou seu poder de fogo: causou prejuízos bilionários à burguesia, escancarou a dependência do sistema do trabalho de base, dos que movem a mercadoria e alimentam o capital.
Mas também surgiram os limites. A presença de setores patronais e a hegemonia de discursos confusos “nacionalistas e da extrema-direita’’, infiltrados nas redes de comunicação, impuseram barreiras à consciência de classe. A bandeira do Brasil tremulava junto aos caminhoneiros — símbolo de uma pátria mistificada e disputada que oculta as divisões de classe. Discursos de intervenção militar e antipolítica se espalharam entre áudios e memes. O instinto era revolucionário, mas a consciência, por vezes, contraditória e com limites
Ainda assim, como ensina a tradição revolucionária, não se deve desprezar a revolta por seus limites. A revolta é o estopim, o grito primal de uma classe que não aguenta mais. Ela é potência bruta, é o momento em que a paciência popular se rompe. E é nela que reside o germe da transformação. A consciência não nasce da calmaria, mas do caos criador da ação coletiva.
Por isso, a memória da greve dos caminhoneiros deve ser guardada como lição e inspiração. Mostrou que sem estruturas permanentes e autônomas, cada revolta tende a desaparecer como faísca no vento. Mas também mostrou que há força nos setores estratégicos da classe trabalhadora, que há sede de luta naqueles que movem os caminhões, os aplicativos, os serviços e os bens do povo.
Cabe a nós, militantes da causa popular, fortalecer essa base viva, criar laços duradouros, cultivar uma nova organização sem partidos eleitoreiros, sem patrões e sem política burguesa. Um movimento que avance do instinto à consciência, da explosão à construção. Com ação direta, com solidariedade de classe, com federalismo de base e ética libertária. Com o povo e para o povo.
Não nos interessa conduzir o povo — queremos marchar com ele, lado a lado, construindo no seio da revolta popular as sementes da revolução. Porque é no caos que nasce a liberdade. Porque só o povo organizado e em movimento pode romper as correntes da exploração. Porque só há futuro se for de baixo para cima. E porque, como ensina a história, é da massa em fúria que emergem as novas auroras. ■