[Rojo y Negro] A criminalização do Movimento Resistência Popular (MRP) e a incansável luta dos oprimidos

Artigo de Antônio “Galego” publicado na revista “Rojo y Negro” nº401, junho de 2025, editada pela Confederação Geral do Trabalho (CGT – Espanha), páginas 24 à 26.

Imagem 1 – Movimento Resistência Popular realiza protesto por moradia, 2015.

Completam-se já 10 anos de uma intensa campanha de criminalização e perseguição política do Estado brasileiro contra importantes lideranças da luta pela moradia e pela terra em Brasília, capital federal do Brasil. Estamos falando do líder popular Edson Francisco e outras lideranças, membros e ex-membros do Movimento Resistência Popular (MRP), vítimas de prisões, torturas e processos jurídicos ao longo desses anos.

            O capítulo jurídico mais recente ocorreu em agosto de 2024 com a condenação em 2ª instância pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) de 11 militantes e ex-militantes do MRP com as acusações de extorsão de famílias, organização criminosa e outros delitos penais. A situação dos 11 condenados pelo TJDFT é grave, correndo o risco de serem encarcerados a qualquer momento, com penas que chegam a 8 anos de cadeia. No exato momento, início de abril de 2025, a criminalização se intensifica com a expedição dos mandatos de prisão contra os lutadores do povo.

            A história que vou denunciar aqui é cruzada profundamente pela formação desigual da capital do Brasil, pelo avanço da política de repressão dos movimentos sindicais e populares e pelos desafios e crises da classe trabalhadora no país.

10 anos de repressão e resistência: um breve histórico do MRP

As perseguições contra o MRP começam em 2015, no mesmo ano de fundação do movimento. O MRP já nasceu sob a mira dos poderosos, com centenas de famílias mobilizadas, ameaçando levantar um forte movimento popular de trabalhadores pobres e sem-teto em plena capital federal, em um contexto nacional de grandes tensões sociais e políticas.

            Haviam passados poucos anos da revolta popular de junho de 2013. A criação do movimento ocorre entre a realização da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016[1], ambas sediadas no Brasil, sob fortes protestos populares e avanço da repressão estatal, conjuntura que abalará profundamente até hoje a política nacional, atingindo também as organizações da classe trabalhadora.

            O MRP já surge como uma “ameaça” por três motivos: 1º) o acúmulo político e organizativo anteriores a fundação do movimento; 2º) a firme decisão, que precipitou a própria criação do movimento, de se manter independente em relação a governos, partidos e patrões; 3º) a estratégia de luta baseada na ação direta de massas, ou seja, nas ocupações e manifestações.

            Algumas de suas lideranças já eram experimentadas em vários anos de luta. Edson Francisco da Silva, principal liderança do MRP, nascido e criado numa favela em São Paulo, começou a sua trajetória de luta bem cedo no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) em São Paulo. Com a política de expansão nacional do MTST, o camarada Edson é destacado para a construção do MTST em Brasília, começando os trabalhos e articulações em 2010.

            Nesse período, de 2010 a 2015, o MTST organizou grandes lutas em Brasília, mobilizando milhares de trabalhadores sem teto. A repressão estatal e paraestatal começou desde o início da luta, tal como as tentativas de homicídios[2] por pistoleiros contra Edson. A primeira grande ocupação ocorreu em 2012 e foi batizada “Novo Pinheirinho” (em referência ocupação Pinheirinho em São Paulo, que foi brutalmente reprimida pelo Estado apesar da autodefesa empreendida) e mobilizou mais de 1.500 famílias. O MTST foi crescendo em Brasília e no Brasil. Guilherme Boulos, liderança nacional do MTST e hoje deputado federal pelo PSOL, ainda era pouco conhecido pela “opinião pública” naquela época.

Imagem 2 – Ocupação Novo Pinheirinho, Ceilândia-DF, 2012.

Imagem 3 – Resistência contra reintegração de posse da ocupação Novo Pinheirinho, Ceilândia-DF, 2012.

            Em uma parte desse período de nacionalização o MTST foi filiado à CSP-Conlutas (saindo em 2012) e possuía uma orientação interna muito avançada que proibia a participação de seus militantes nas eleições burguesas, defendendo a independência de classe e a ação direta, tal como expresso nas resoluções finais do I Encontro Nacional do MTST em 2011:

“As formas de atuação do MTST estão centradas na luta direta contra nossos inimigos. Isto é importante porque nos diferencia da maioria dos movimentos urbanos, que optaram por focar suas ações na participação institucional. (…) Nossa forma de ação mais importante são as ocupações de terras urbanas. Com elas pressionamos diretamente os proprietários e o Estado, denunciamos o problema social da moradia e construímos um processo de organização autônoma dos trabalhadores.”

“Nas alianças com os partidos políticos temos muito claro que o MTST não atua no campo eleitoral e não aceita a participação de seus militantes, especialmente dirigentes, neste processo muitas vezes vicioso. (…) A questão fundamental é preservar nossa autonomia política e opção pela luta direta.”

            Isso vai se modificando entre 2014 e 2015. Acontece um grande recuo nacional de cunho eleitoreiro e governista que toma conta da direção nacional do MTST e que hoje estão expressos na figura de Boulos e das “candidaturas do MTST” pelo PSOL, na preponderância da participação institucional em detrimento da luta direta e na defesa do governo federal Lula-Alckmin. É o compromisso com as orientações históricas de luta (autonomia e ação direta de classe) que explicam a criação do MRP em 2015, como um racha do MTST em Brasília, levando a maior parte das famílias e lideranças para o novo movimento.

            Mas o conflito político instaurado entre o MRP e o MTST vai levar a consequências dramáticas. A reação vingativa e oportunista da minoria que permaneceu no MTST levará alguns de seus militantes a realizarem denúncias caluniosas na justiça burguesa contra o MRP. Aconteceu algo inesperado e extremamente grave: um movimento popular (MTST) e um partido (PSOL) se apoiaram na política de criminalização e perseguição estatal para enfraquecer e deslegitimar um movimento dissidente (MRP) que buscava manter a sua independência e combatividade. Essa é a verdadeira origem do processo jurídico absurdo (que citamos no início) e que hoje ameaça os militantes do MRP.

            Com a criação do MRP, e já com uma força considerável, o movimento realiza novas lutas, sendo a principal delas a ocupação do antigo hotel abandonado Torre Palace, no centro de Brasília, em 23 de outubro de 2015. É importante falar dessa ação pois ela teve como consequência a maior ofensiva política burguesa contra o movimento através de uma ação coordenada das forças militares, jurídicas e midiáticas com o objetivo de cerca e aniquilar o movimento, gerando também outro importante e injusto processo judicial até hoje inconcluso.

Imagem 4 – Repressão policial na reintegração do hotel Torre Palace, 5 de junho de 2016.

            A ocupação do Torre Palace durou cerca de sete meses, sendo desocupada em 5 de junho de 2016 após uma megaoperação de reintegração que durou cinco dias. Nesses dias de preparação da desocupação a polícia cercou o local, impedindo aqueles que estavam fora (muitos dos quais tinham saído para trabalhar) retornassem à ocupação. Durante a noite, helicópteros davam rasantes nas janelas, jogando luzes fortes, jogando bombas e gás de pimenta, buscando cansar as famílias e militantes. Todos esses dias a grande mídia local veiculava matérias criminalizando o movimento e suas lideranças, inclusive se utilizando da denúncia anteriormente citada. Chegou a ser veiculada notícia contra o movimento em rede nacional de televisão.

            No dia da operação militar ainda resistiam no prédio 12 adultos e 4 crianças. A violência foi brutal, realizada por mais de 200 homens do Batalhão de Choque (BPChoque) e do batalhão de Operações Especiais (Bope) com o auxílio do Corpo de Bombeiros[3]. Um dos militantes do movimento ficou cego por um tiro de borracha a queima roupa, uma grande liderança do MRP, Ylka Conceição de Carvalho, que estava grávida na época, foi espancada mesmo gritando pela vida de seu filho na barriga. Todos que estavam lá foram duramente espancados e saíram de lá presos. Alguns dos militantes chegaram a passar 8 meses encarcerados sofrendo torturas físicas e psicológicas. Ao final da operação as forças repressivas hastearam a bandeira do Brasil sobre o edifício, como em uma verdadeira operação de guerra colonial.

            Até hoje corre na justiça o processo que acusa os bravos lutadores do MRP de organização criminosa, tentativa de homicídio, tortura, resistência, desobediência e dano a patrimônios público e privado. Ou seja, tirando a “resistência” e a “desobediência” o Estado acusa as vítimas exatamente de todos os crimes cometidos por ele mesmo! Um registro histórico e fundamental desse momento de formação do MRP é o filme documentário “Cadê Edson?” (2019) da diretora Dacia Ibiapina.

Imagem 5 – Poster do filme documentário “Cadê Edson?”

            Naqueles primeiros anos de existência foram duros os golpes ao MRP e à luta por moradia como um todo, especialmente aos setores mais independentes. Mas nem dessa forma conseguiram acabar com o movimento. A forte determinação de luta e crença na causa do povo tem guiado, desde 2017 até hoje, o caminho das lideranças e famílias do MRP para a reorganização do movimento. Em 27 de agosto de 2017, por exemplo, o MRP aprova a sua filiação à CSP-Conlutas[4]. No dia 1º de outubro de 2022, em pleno final de semana de eleições presidenciais, uma forte ocupação surgiu no bairro da Ceilândia[5]. A ocupação foi reprimida e despejada, mas foi um passo importante de reconstrução da luta. Hoje o MRP conta com alguns acampamentos, uns mais estabelecidos que outros.

Imagem 6 – Resistência contra a repressão policial na ocupação do MRP na Ceilândia, 2022.

Imagem 7 – Plantação em área coletiva em acampamento do MRP, fevereiro de 2025.

            Existem muitos desafios para os próximos anos, além de derrotar os processos jurídicos já citados, outro grande desafio é derrotar a repressão por parte do Governo de Ibaneis Rocha (MDB) que se abate hoje contra toda e qualquer luta, sendo um exemplo disso os mais de 50 despejos já sofridos pelas famílias camponesas do MRP na ocupação Terra Prometida no bairro de Brazlândia.

“Solidariedade é mais que palavras!”: a Campanha de Solidariedade ao MRP

            Desde a criação do MRP, especialmente após a avalanche de denúncias falsas e criminalização por parte do Estado, pintando as lideranças como “bandidos” e “violentos”, o movimento passou por um período de isolamento político, com vários aliados se afastando, movimentos e partidos fechando os olhos e os ouvidos aos chamados de solidariedade e ao apoio para a luta. O movimento se reconstruiu praticamente sozinho, se sustentado em suas próprias forças, na confiança e energia que vinham das famílias e das bases, e da determinação de ferro que demonstrou suas lideranças. Poucos, ainda que importantes, foram as organizações políticas e sociais que seguiram apoiando o movimento. A principal delas foi a CSP-Conlutas.

            No início de 2023, em Brasília-DF, a partir de um chamamento da CSP-Conlutas e do jornal O Amigo do Povo, foi constituído o Comitê de Solidariedade ao MRP, com a incorporação de outras organizações e coletivos como a Unidos pra Lutar/PSOL, PSTU, GLP, CBHG, jornal A Nova Democracia, FOB e MLB. A construção do Comitê se formou ante a condenação em 1ª instância pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), momento em que foi feita um Manifesto Nacional de Solidariedade com a assinatura de 60 organizações de todo o país[6]. Desde então foram realizadas diversas atividades de propaganda, exibição de filmes[7], adesivos, campanhas de financiamento, acompanhamento do processo jurídico, solidariedade ativa às lutas do movimento.

Imagem 8 – Estudantes exibem faixa após exibição do filme “Cadê Edson?” na Universidade de Brasília, em abril de 2023.

            O dia 05 de dezembro de 2024 foi um marco para a campanha de solidariedade ao MRP. Nesse dia ocorreu a Audiência Pública na Comissão de Legislação Participativa (CLP) da Câmara dos Deputados com o tema “criminalização dos movimentos sociais”. A denúncia principal foi a condenação dos 11 ativistas e ex-ativistas do Movimento Resistência Popular (MRP) e da forte repressão contra o Acampamento Terra Prometida em Brazlândia (DF).

            O ato-Audiência contou com a participação do Movimento Resistência Popular (MRP), Frente Nacional de Luta Campo Cidade (FNL), Central Sindical e Popular Conlutas (CSP-Conlutas), Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), Grupo Libertação Popular (GLP) e do Coletivo de Base Honestino Guimarães (CBHG), além dos parlamentares Glauber Braga (PSOL) e Érika Kokay (PT).

            Foram denunciados também o despejo da Ocupação Expedito Xavier organizada pelo MLB, as perseguições nacionais às lideranças da FNL e a prisão injusta da liderança “Zezé” do MTST-DF (solta recentemente) sob a acusação sem provas de “extorsão” de famílias, a mesma acusação infame que recai sobre o MRP. Ficou claro para todos a política nacional do Estado de aumentar a criminalização e repressão das lutas, sob a forma de diversos Projetos de Lei de políticos latifundiários e burgueses[8]. Também ficou claro que haverá resistência, e a luta vai continuar.

Imagem 9 – Após audiência pública o movimentos fazem protesto na frente do STJ, dezembro de 2024.

            Após a audiência, as organizações presentes foram em marcha para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) onde exigiram o arquivamento imediato do processo contra o MRP e denunciaram a repressão ao acampamento Terra Prometida. Os presentes gritaram alto as palavras de ordem “Arquiva o processo do MRP, lutar não é crime, o povo vai vencer!” e “Nossa bandeira está erguida, viva a luta da Terra Prometida!”.

            Mais uma vez se torna urgente a tarefa de cobrir de solidariedade o MRP e os que lutam por uma vida digna, denunciando e pressionando contra a prisão eminente de nossos camaradas. Frente a todas as ameaças e dificuldades, seguiremos acreditando no poder e na luta dos pobres do campo e da cidade. Não se deixar intimidar, não se deixar cooptar, aproveitar os momentos difíceis para unir os lutadores e organizações populares. A vitória do MRP será uma vitória política para todos os movimentos autônomos da classe trabalhadora no DF, do Brasil e do mundo!


[1]Como registrado no artigo “Nosso filme tem que ser para construir a luta do povo: uma conversa com Dácia Ibiapina e Edson Silva” (2021): “Em 2016, integrantes do MRP impediram que a tocha olímpica passasse no Eixo Monumental antes de chegar ao Estádio Mané Garrincha, impondo um desvio de trajeto.”

[2]https://www.pstu.org.br/df-dirigente-do-mtst-sofre-novo-ataque/

[3]https://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2016/06/com-helicoptero-e-bomba-pm-do-df-desocupa-torre-palace-apos-5-dias.html

[4]https://www.pstu.org.br/trabalhadores-sem-teto-organizados-pelo-mrp-df-e-camponeses-do-moica-sp-filiam-se-csp-conlutas/

[5]Vídeo curto com imagens do início da ocupação: https://www.youtube.com/watch?v=jvhnHcdmizQ

[6]https://oamigodopovo.noblogs.org/post/2023/04/15/manifesto-nacional-em-solidariedade-ao-mrp-df/

[7]https://anovademocracia.com.br/df-documentario-exibido-na-unb-denuncia-perseguicao-a-movimentos-de-luta-por-moradia/

[8]https://oamigodopovo.noblogs.org/post/2025/02/18/perseguicao-aos-movimentos-sociais-o-medo-das-classes-dominantes/

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