Publicado no Jornal O Amigo do Povo, nº15, Novembro/Dezembro de 2025.
Júlia.

Há dez anos, o Governo do Estado de São Paulo, sob o comando de Geraldo Alckmin (PSDB), anunciou a “reorganização” das escolas da rede estadual que modificaria ciclos, turnos e turmas, acarretando o aumento da quantidade de alunos por sala, o fechamento de várias turmas do noturno e EJA, a municipalização de algumas unidades e, principalmente, o fechamento de 94 escolas. Contra a medida, os estudantes organizaram inúmeras manifestações que foram ignoradas ou reprimidas, o que levou o movimento a adotar a tática de ocupação das escolas. Em todo o estado, 212 escolas foram ocupadas.
As ocupações de escolas, protegidas por barricadas e cercadas de solidariedade popular, garantiram que a vontade política dos filhos da classe trabalhadora prevalecesse sobre a do Palácio dos Bandeirantes. O projeto de reorganização foi derrotado, impondo uma das mais importantes derrotas da história do governo tucano em São Paulo.
O movimento representou a continuidade e o aprofundamento do ciclo de lutas aberto com as jornadas de junho de 2013, o maior levante popular da história do país, que declarou a ruptura, de baixo para cima, das massas populares, com o pacto de classes lulista iniciado em 2003. Nesse processo, se generalizam o questionamento do papel do Estado no processo de emancipação social, a busca por formas horizontais de organização política e social e a adoção da ação direta de massas como método fundamental de resistência.
Neste texto, além de prestar homenagem ao heroico movimento da juventude trabalhadora paulista, indicamos algumas lições da ação coletiva estudantil para os revolucionários brasileiros.
- A primeira manifestação contra a reorganização ocorreu apenas cinco dias após seu anúncio, mas foram meses de uma luta sem trégua, com estudantes entrincheirados nas ocupações durante o natal e o ano novo, até a vitória. A revolta espontânea dos estudantes só desenvolveu seu potencial combativo porque havia prévia organização com independência de classe, sob a forma de coletivos como O Mal Educado, que propuseram e planejaram as primeiras ocupações, exemplo replicado massivamente em todo o estado.
- As ocupações demonstraram a superioridade da ação direta de massas frente aos métodos legalistas dos sindicatos e entidades estudantis pelegas. Para além das tradicionais manifestações de rua orientadas à órgãos do poder público para exigir diálogo ou sensibilizar parlamentares, as greves, boicotes e ocupações de vias e prédios públicos contornaram a invisibilização e o silenciamento dos protestos, que visavam desmobilizar o movimento.
- O modelo de organização e ação adotado combinava a centralização e a descentralização do poder e dos recursos. Cada ocupação gozava de completa autonomia decisória sobre suas atividades locais, mas decisões e ações coletivas eram encaminhadas através do Comando de Escolas Ocupadas, órgão que visava garantir a unidade e a coordenação de todo o processo. Atos de rua massivos em pontos centrais eram alternados com atos menores, em diferentes pontos das cidades, realizados simultaneamente. Nas negociações, eram apresentadas tanto reivindicações gerais do movimento quanto pautas específicas de cada escola.
- A circulação internacional de experiências de luta é fundamental para constituir o repertório de ação dos lutadores. As ocupações de escola promovidas pelos estudantes do Chile e da Argentina em anos anteriores e as vitórias naqueles países serviram como modelo para a resistência por aqui. Para além da inspiração e da replicação, o internacionalismo deve ser incorporado aos processos de luta visando a construção de alianças e articulações entre combatentes de diferentes países, principalmente na América Latina.
- As vitórias dependem da confiança do povo em suas próprias forças. Além de enfrentar o governo, os estudantes precisaram enfrentar também a ação desmobilizadora dos partidos reformistas (PT e PcdoB, principalmente). Na luta de classes, os conflitos se dão frequentemente entre o povo e a burguesia e, simultaneamente, entre o povo e os defensores da ordem burguesa junto ao povo. As práticas burocráticas do reformismo, como as negociações a portas fechadas com governos e a intermediação de parlamentares, foram rechaçadas pelas ocupações, garantindo na prática a independência de classe da resistência estudantil.
- A organização das ocupações representou uma oposição real aos modelos burocratizados da organização estudantil oficial (UNE e UBES). Divididos em comissões deliberativas e operativas e realizando assembleias diárias, os próprios estudantes ocupados decidiam sobre os rumos da luta. A autonomia, a auto-organização e a democracia direta foram as bases dessa experiência de gestão das escolas pela comunidade estudantil e trabalhadora, em que cada unidade de ensino se tornou um foco do poder popular nos bairros.
- A autodefesa organizada dos estudantes tanto nas escolas quanto nas ruas foi essencial para a manutenção e segurança das ocupações, principalmente contra a brutalidade policial comandada por Alexandre de Moraes (Secretário de Segurança Pública de Alckmin) e o “movimento desocupa” (impulsionado por forças antipovo, como o MBL). Para nossa defesa, também é preciso não esquecer e não perdoar aqueles que reprimiram as justas rebeliões das massas.
- É vital para todas as resistências superar o isolamento e o corporativismo. A articulação com o movimento sindical e popular, a vigília constante de apoiadores instaurada do lado de fora das ocupações e as inúmeras manifestações de solidariedade popular catalizaram a queda vertiginosa da popularidade da gestão Alckmin e pressionaram pelo recuo da reorganização escolar.
- Para além da necessária disputa de classes sobre o sistema nacional de educação, o movimento estudantil é estratégico para a reorganização das massas no Brasil, por contribuir para o desenvolvimento da consciência de classe dos trabalhadores em formação e para a formação de quadros para o movimento sindical e popular, possibilitando o aprendizado pela prática de métodos históricos de luta da classe trabalhadora – inclusive daqueles negligenciados pelas burocracias sindicais e partidárias – que servirão de subsídio a novas ações de resistência.
- Com as ocupações, os estudantes estabeleceram um contrapoder que neutralizou temporariamente os poderes governamentais sobre as escolas (PSDB) e sobre o movimento estudantil (PcdoB/PT). Quando as escolas foram desocupadas, a organização independente, combativa e massificada retrocedeu. É comum que grandes levantes e processos insurgentes sejam seguidos de desmobilização e perda de vitalidade, o que reflete os limites do imediatismo, do pragmatismo e da falta de uma perspectiva programática e estratégia que garanta que o saldo dos levantes “espontâneos” (principalmente as experiências organizativas locais, informais e temporárias e as novas lideranças de base) não se perca por completo em contexto de refluxo ou seja cooptado pelas forças da ordem.






