Guyraroka: nova retomada expõe o uso de agrotóxicos como arma de guerra e as redes do latifúndio corporativo

Publicado no Jornal O Amigo do Povo, nº15, Novembro/Dezembro de 2025.

Maria Ignácia Montero e Esteban del Cerro
10 de outubro de 2025

As retomadas Guarani e Kaiowá, processos de luta pela recuperação das terras ancestrais desses povos, se intensificaram em julho de 2024 no Mato Grosso do Sul após avançarem coordenadamente em cinco tekoha (lugar onde se é), em especial, parte da Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica: Yvy Ajere, Kurupai’ty e Pikyxi’yn. Nestes locais, hoje se fortalece a autonomia por meio de roças tradicionais e regeneração florestal, em contraposição às antigas monoculturas de soja e milho. No dia 21 de outubro deste ano, foi retomado parte do território reivindicado da Terra Indígena (TI) Guyraroka (“terreiro dos pássaros”) e, em seguida, de Passo Piraju/Porto Cambira. A TI Guyraroka é declarada como ocupação tradicional Guarani e Kaiowá pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) com 11.401 hectares. Atualmente, Guyraroka ocupa apenas 44 hectares. Com a morosidade do Estado em cumprir seu papel na demarcação e com os constantes ataques químicos com agrotóxicos pelos fazendeiros, os indígenas decidiram retomar a Fazenda Ipuitã, sobreposta a TI e limítrofe ao local atualmente ocupado. Os ataques químicos contra a retomada são feitos através de máquinas e aviões agrícolas, resultando na perda de toneladas de alimentos produzidos pelos indígenas e frequente adoecimento da comunidade, incluindo casos de hospitalização. As pulverizações são frequentes nas proximidades da escola indígena.

A resistência que já não teme a morte

O território militarizado com viaturas e helicópteros sinaliza a sistemática violência estatal-latifundiária contra os Guarani e Kaiowá, desta vez na região de Caarapó. O atual Secretário de Segurança Pública, Antonio Carlos Videira, carniceiro anti-indígena, comandou massacres em 2016 e 2022. A primeira retomada de Guyraroka ocorre nos anos 2000, em parte do latifúndio de 6183 hectares do deputado mais rico do MS, Zé Teixeira (PSDB), que “doou R$10 mil do próprio patrimônio para Bolsonaro. […] sua Fazenda Santa Claudina está integralmente sobreposta à TI Guyraroká. […]: seu patrimônio de R$ 46,4 milhões inclui o território em litígio”1. Foi de dentro de sua fazenda que, na ocasião, atiraram contra os indígenas. Um bebê recém-nascido foi morto. Zé Teixeira defendeu os fazendeiros responsáveis pelo Massacre de Caarapó e é militante do Marco Temporal, que determina que os indígenas só teriam direito a terra caso comprovassem ocupação ou disputa territorial na ocasião do dia 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal. Em 2014, o estudo de Guyraroká foi anulado no STF, como consequência do Marco Temporal. Em 2021, Guyraroká se torna caso de Repercussão Geral no julgamento histórico no STF acerca do Marco Temporal, junto com a Terra Indígena (TI) Ibirama-La Klãnõ dos Xokleng, em Santa Catarina. O que fosse definido para estas TIs seria válido para todas as Terras Indígenas do Brasil.

Conectando pontos da violência estatal-empresarial-latifundiária

No dia 24 de setembro, apesar do despejo ilegal resultante da ação da polícia, os indígenas voltam a realizar a retomada. Pistoleiros acampados na fazenda Ipuitã os atacam com tiros e dois indígenas são sequestrados na sede da fazenda. A DOF e PM estão em constante comunhão com os pistoleiros, hoje substituídas pela Força Nacional. No dia 25 de outubro, após mais pulverizações de agrotóxicos e ataques de pistoleiros e policiais, a retomada avança na sede da fazenda e é atacada. Uma mulher é sequestrada.

Os proprietários da fazenda Ipuitã e Lagoa de Ouro são da mesma família. Apenas a Fazenda Lagoa de Ouro detém 5.566,66 hectares. São fazendas de Cláudia Mei Alves de Oliveira e Luiz Gustavo Barbosa de Oliveira, filhos e filhas de Saulo Alves de Oliveira, primeiro proprietário. Há processos jurídicos que determinam que cessem a aplicação de agrotóxicos na área próxima de Guyraroka. Os filhos de Saulo têm vínculos diretos com a Coamo, empresas agrícolas e grandes fazendas no interior de SP, lojas e armazéns de capital milionário, além de possuírem aviões agrícolas usados para os ataques químicos e outros processos por danos ambientais graves. Saulo, já falecido, também já foi processado por superexploração de trabalhadores em suas fazendas.

Quem fez a defesa de Saulo e sua família no caso de Guyraroka foi o advogado Cicero Alves da Costa, autor da primeira causa contemplada no STF pela regra do Marco Temporal, justamente sobre Guyraroka. O advogado faz propaganda da ação como “vitória” – nada mais equivocado, diante do avanço recente da retomada. Sua sanha anti-indígena o faz considerar o Marco Temporal uma medida ainda pouco eficaz, e vai além: questiona os fundamentos da lei de demarcação de terras, para cessá-las em definitivo. Seu escritório de advocacia, com sede em Dourados – “Cicero Costa Advogados” – tem como parceiras na equipe jurídica Juliana Cembranelli da Costa, que defendeu o fazendeiro Laertes Alberto Dierings, condenado pelo MPF por ocultar e remover cadáveres Kaiowá e Guarani do tekoha Pakurity, em Dourados.

Então…

Os Guarani e Kaiowá de Passo/Piraju afirmaram que o “Estado quer nos exterminar”. Os organismos estatais têm agido de diferentes formas na violação dos direitos dos indígenas. A SEJUSP tem atuado com repressão e violência, incluindo despejos ilegais. A FUNAI esteve ausente no acompanhamento das ações policiais no território, sob alegação de risco aos servidores. O MPI tem buscado costurar acordos com o governo do estado, que está limitado à saída gradual da polícia do local. O ministério ainda sinalizou o acordo de mobilização para uma suposta “Força Tarefa” nos moldes do que houve no processo demarcatório de Ñande Ru Marangatu, quando após o assassinato de Neri Ramos com um tiro de fuzil da Polícia Militar na cabeça, foi realizada uma negociação para a demarcação via compra da terra, recompensando com fundos milionários os fazendeiros pelos anos de genocídio, esbulho territorial, exploração da terra e violações de direitos cometidas contra os indígenas.

A luta histórica de anciões centenários de Guyraroka como os rezadores/as Seu Tito e sua companheira Miguela são inspiração para os mais jovens, que não viram a mesma floresta que o casal centenário, mas que veem a recuperação do tekoha como única forma de vida diferente da realidade de uma terra diminuta, em regime de confinamento. A vida digna no tekoha inicia quando eles se levantam, entre diferentes gerações, e retornam para os caminhos que os mais velhos, os que vieram antes de nós, andaram e viveram livres antes da colonização. A demarcação de Guyraroka, enquanto não vem, será feita na marra: quantas vezes for necessário, as cercas serão rompidas.

1 Informações levantadas através do De Olho nos Ruralistas (2023).

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