Chile | Declaração política do secretariado geral da Força Ação Revolucionária

Apresentação

As eleições chilenas levaram à presidência o reacionário José Antônio Kast. Buscando contribuir com uma análise socialista e revolucionária das razões dessa vitória, das lições e desafios para a luta das massas populares chilenas e latino-americanas, publicamos aqui a tradução em português da declaração política do secretariado geral da Força Ação Revolucionária do Chile (FAR).

O processo político chileno revela dilemas comuns às massas populares latino-americanas. A similaridade se torna ainda maior com o Brasil. Os dois países passaram por revoltas populares na segunda década do século XXI, Brasil em 2013 e Chile em 2019, que mudaram profundamente a luta de classes e a política nacional. Nesse cenário as políticas progressistas e reacionárias emergem como duas faces da gestão do sistema e controle das massas. O refluxo das lutas, gerando retrocessos organizativos e ideológicos, será uma marca também do período pós-revolta, exigindo dos revolucionários uma precisão de análise e atuação diante dos cenários adversos.

O comunicado apresentará as raízes das opções eleitorais, Kast e Jara, bem como fará uma importante crítica dos falsos pressupostos políticos do progressismo chileno baseado na chantagem, no medo e no oportunismo eleitoreiro: “defesa da democracia”, “retorno do fascismo”, e outros. No Chile como no Brasil o progressismo é a antessala do reacionarismo.

Assim, mais do que um texto de curiosidade política, a tradução que disponibilizamos aqui nos ajuda a pensar e agir em nossas realidades, extrair as lições, identificar as diferenças, avançando em nossas tarefas de combate contra os nossos inimigos e contra nossas próprias limitações, rumo a revolução brasileira e latino-americana.

Tradução ao português: Maradona


Balanço político e tarefas da militância revolucionária frente ao novo cenário da luta de classes.

Como um déjà vu histórico, o prelúdio destas eleições presidenciais nos remete inevitavelmente ao segundo turno entre Boric e Kast em 2021. Antes, como agora, utilizou-se de um amplo repertório de argumentos orientados a justificar o voto pelo progressismo, apresentando-o como a única barreira possível frente à reação. Hoje, esse mesmo raciocínio reaparece sustentado pelo medo, pelo desespero e, sobretudo, pela ausência de um caminho político próprio para avançar na luta revolucionária.

Desde nossa perspectiva, não é uma novidade assinalar que Kast e Jara[1] representam estratégias distintas de governabilidade, mas ambas são funcionais e complementares sob o regime burguês.

Uma de rosto amável, se esforça para representar e daí convocar um eleitorado que habita e reconhece seus pesares como classe, mas que não identifica uma saída distinta para transformar sua realidade material e deposita sua esperança em quem hoje é o rosto visível da política de conciliação de classes, quer dizer, que administra e subordina as massas a uma exploração pintada com cores de uma falsa dignidade. A outra, abertamente reacionária ideologicamente e liberal economicamente, prescinde de mediações, reivindica a repressão e reduz a liberdade a um privilégio exclusivo do capital para explorar sem obstáculos a classe trabalhadora.

Ambas estratégias não se opõem no fundamental. Se relevam historicamente segundo as necessidades do bloco no poder. Nesse sentido, não é exagerado afirmar que o governo de Boric cumpriu um papel decisivo na recomposição, ao menos aparente, do regime democrático burguês após a derrota da situação insurrecional de 2019[2]. Favorecido pelo recuo do movimento de massas, seu governo logrou restaurar a legitimidade das forças da ordem, fortalecer os aparatos repressivos e reordenar o cenário político. Não por casualidade, tem sido o governo que mais avançou em matérias de segurança pública e repressão desde o retorno à democracia burguesa.

ENTÃO, BORIC ERA A ANTESSALA PARA PREPARAR O TERRENO A UM GOVERNO REACIONÁRIO?

Sem sombra de dúvidas, Boric foi a carta de consenso da burguesia há 4 anos, e o último cartucho que dispunha a classe dominante para estabilizar seu regime, cumprindo sua função cabalmente, ainda que a custo do descrédito e debilitação das próprias forças progressistas. No entanto, para a burguesia isto não representa um problema. A renovação de rostos e discursos é uma necessidade inevitável frente a perda de legitimidade dos partidos políticos institucionais que, ainda que contida, segue aberta no campo popular.

Neste sentido, a eventual vitória de Kast não nos surpreende nem nos escandaliza, pois faz parte do mesmo movimento de recomposição do poder burguês. Muito menos é estranho que setores do progressismo e no mesmo comando de Jara, já projetem os resultados destas eleições como preparação para a corrida eleitoral de 2029, onde figuras como Parisi[3] cumprirão um papel central para canalizar o descontentamento sob formas controladas e institucionalizadas.

UMA RESPOSTA À RETÓRICA INÓCUA EM TORNO DAS ELEIÇÕES

Frente à esse cenário, faz-se necessário responder politicamente a uma série de argumentos que circulam com força entre setores progressistas, reformistas e pseudo-revolucionários.

Um deles é o chamado para votar em Jara “em defesa da democracia”. Pelo marxismo, esta consigna só pode ser entendida como uma mistificação. A democracia burguesa é uma forma histórica concreta de dominação de classe. É a ditadura do capital organizada sob mecanismos formais de representação.

Defender esta democracia e omitir seu caráter de classe implica em subordinar o movimento popular à agenda do progressismo e aceitar como horizonte político encontrar novas formas para a administração da exploração. Por outro lado, nada está mais longe da realidade que pretender expor que um futuro governo de Kast colocará em cheque a democracia burguesa, pois ele não atua de forma independente aos interesses de classe que representa, e para a burguesia sua democracia é um princípio fundamental para sustentar sua dominação e garantir sua acumulação.

Outro argumento recorrente é a caracterização de Kast como um retorno ao fascismo. Mesmo que seu projeto expresse uma radicalização reacionária, não é mais que uma variante conservadora e autoritária que opera, como já mencionamos, dentro dos marcos da ordem democrática burguesa. Não se trata de minimizar o caráter de seu projeto reacionário nem seu rol político, nem desconhecer os antecedentes históricos familiares que herda. No entanto, devemos entender que o marxismo não define o fascismo por adjetivos morais nem por rompantes autoritários isolados, senão por sua função histórica, sua base de classe e sua relação com o Estado burguês em crise.

Ou seja, o fascismo emerge como força política e social quando:

  • o capitalismo entra em uma crise orgânica profunda,
  • o Estado burguês perde capacidade de governar pelos meios democráticos habituais,
  • e o movimento dos trabalhadores e popular representa uma ameaça real de poder.

Por outro lado, sua ascensão não se explica por uma suposta direitização consciente das massas, senão pela incapacidade estrutural do progressismo, expressão política de classe da pequena burguesia, para dar resposta aos problemas materiais urgentes das massas populares, especialmente em territórios e regiões golpeados pelo abandono estatal. Kast capitaliza o mal-estar social mediante um discurso populista que promete ordem e soluções simplistas e irreais a contradições estruturais que não só não pode resolver mas que têm sido agudizadas pelos mesmos setores que representa, tanto aquela imigração irregular que ingressa em condições de escravidão para trabalhar no agro ou em outros setores precários, como a delinquência e o narcotráfico vinculados estreitamente às forças repressivas que não somente são cúmplices mas também atores protagonistas do crescimento e recrudescimento da violência do lumpen[4] e do narco nas populações.

Da mesma forma, é errôneo entender que os resultados eleitorais são um reflexo direto do nível de consciência das massas e que a eventual vitória de Kast, ou a importante votação dos setores reacionários nas eleições do mês passado, são indicadores do recuo da classe trabalhadora. As eleições não medem consciência de classe, nem são um indicador do avanço ou retrocesso ideológico das massas, mas representam a capacidade dos distintos projetos burgueses para interpretar e canalizar demandas imediatas, reais ou aparentes. Confundir votação com consciência é superestimar o terreno eleitoral e abandonar uma compreensão dialética da luta de classes. A consciência, inclusive o estado de ânimo das massas, expressa-se na experiência organizada da luta, não no ato individual do sufrágio.

Neste ponto, reaparece, mais uma vez, a utilização oportunista de Lênin para justificar a participação eleitoral. Se cita Esquerdismo, doença infantil do Comunismo como se fosse um manual atemporal, despojado de seu contexto histórico. No entanto, Lênin foi categórico ao afirmar que o parlamentarismo não é, sob nenhuma circunstância, um meio de emancipação. Em O Estado e a Revolução definiu o parlamento como uma ferramenta de dominação da burguesia, e sustentou que enquanto existir classes exploradoras, o poder seguirá pertencendo à classe dominante, independentemente das mudanças de governo.

É importante dar-nos conta de que, se Lênin bem reconhecia que o parlamentarismo podia ser uma opção tática, não esquecia que isto respondia a uma conjuntura concreta e mais ainda a um contexto específico, não era um dogma nem um princípio, mas uma tática possível a utilizar para determinados propósitos. Para quê? Para denunciar a farsa do Estado Burguês, para realizar propaganda revolucionária e para o desmascaramento de falsos aliados da classe trabalhadora. Há que, em honra a seus escritos, expor também as condições que o mesmo elencava como necessárias para desenvolver dita tática: que as massas confiem no parlamento, e portanto que se possa usar como tribuna para demonstrar sua inutilidade, que dita tática seja subordinada a uma estratégia revolucionária e que a participação parlamentar contribua para preparar a insurreição.

É por isso que é tendencioso e paradoxal utilizar Lênin para argumentar que é necessária a participação eleitoral, não somente porque a conjuntura que atravessamos não condiz com nenhuma das “condições que ele mesmo expõe” mas (isso é o relevante historicamente) que, sobretudo, nos encontramos frente a um momento histórico que, depois de mais de 100 anos de seus escritos, dá conta do amadurecimento do regime democrático burguês como base principal da dominação capitalista, sendo uma ferramenta inexpugnável para o fortalecimento da dominação burguesa mundial.

Por outro lado, no Chile atual, o argumento eleitoral encontra-se alheio a toda a situação política analisada por Lênin, tanto no período prévio à revolução burguesa de fevereiro de 1917, como posterior à revolução bolchevique de outubro do mesmo ano e, portanto, não encontra nenhum suporte político.

A consideração de Lênin expressada na apresentação de seus escritos em torno do tema parlamentar, está marcada pela vitória da revolução bolchevique e a urgência de impulsionar um processo de revolução mundial, assim como por um momento histórico que transitava por condições objetivas totalmente distintas às de nosso país e à grande maioria dos países do mundo, dado que em última instância, quando Lênin advogou pela utilização parlamentar, previamente à revolução burguesa de fevereiro de 1917, a Rússia atravessava o fim do czarismo e com isso a superação do modo de produção feudal imperante.

Em qualquer caso, além de todo o exposto, nunca, jamais, Lênin falou sobre votar como um exercício político para os revolucionários, mas falou sobre utilizar o parlamento para a agitação e a denúncia, portanto, o tema em questão sequer trata do voto mas sim da tática que significava, em seu tempo, utilizar as instituições burguesas como o parlamento, e que, como já mencionamos, não é viável nem compreensível desde uma perspectiva marxista e revolucionária, nem as condições conjunturais nem mesmo estruturais de nosso país, nem da grande maioria dos países do mundo.

Finalmente, nos dizem que votar em Jara é defender os direitos sociais. A experiência concreta desmente esta afirmação. Seu papel na salvação das AFP[5], sua função como mediadora entre o empresariado, o governo e as direções sindicais subordinadas, e seu pertencimento a um governo sob o qual se levaram à cabo demissões massivas de trabalhadores em diversas indústrias, aumentos em serviços básicos, perseguição à população e militarização do Wallmapu[6], mostram com clareza os limites reais do progressismo.

Além disso, no Chile, os chamados direitos sociais têm sido, há décadas, migalhas administradas para garantir a governabilidade. Basta ver que, enquanto na Argentina os trabalhadores se levantam contra uma reforma trabalhista que pretende aprofundar a exploração, e uma reforma educacional que colocará em xeque a educação pública, no Chile as consequências dessas medidas as vivemos desde já bastante tempo e todos os governos de turno têm sido artífices da continuidade e aprofundamento delas.

AS TAREFAS DA MILITÂNCIA REVOLUCIONÁRIA FRENTE AO NOVO MOMENTO DA LUTA DE CLASSES

Se é certo que temos passado por um processo de mais de 5 anos de retrocesso organizativo e ideológico do povo trabalhador, é indiscutível que hoje abre-se um novo momento para a luta de classes, este processo não se trata de que amanhã voltaremos a viver um 2019, nem logo mais, mas sim que significa uma abertura de um processo de ascenso da luta de massas, de pequenos auges e retrocessos, inorgânicos e em sua grande maioria espontâneos mas que gerarão um cenário onde nosso dever será passar da trincheira da conservação de forças próprias, para as tarefas de construção de força social no seio da classe trabalhadora.

Disto, sem dúvida, derivará, para aqueles que compreenderão o cenário, transitar a uma nova tática que ponha no centro a construção político-social e com isso, as tarefas de desenvolver e fortalecer a democracia popular e o protagonismo e independência de classe nos espaços de massas.

Neste caminho, aqueles que têm adquirido, no calor de sua experiência, capacidades de construção, aprendizagem política e também o fortalecimento de seus métodos para o trabalho de massas, terão a responsabilidade de revirar o “terreno plano”. A propaganda terá o dever de dialogar com a realidade concreta de nossa classe, no sentido de compreender o mal-estar, frustrações e expectativas e traduzi-los em demandas, agitação e ferramentas para a educação política de massas.

Por outro lado, o progressismo voltará ao terreno das organizações de massas, a instrumentalizar, cooptar e dispor dos espaços de organização local e setorial para servir às negociações e acordos partidários, experiência tão conhecida pelo PC.

O ativismo, a militância de redes sociais e os grupos de intelectuais alheios às experiências de construção de massas ficarão deslocados porque daí simplesmente não se pode avançar na construção real.

O radicalismo que despreza as massas trabalhadoras não terá vez, porque a classe cedo ou tarde tomará o protagonismo e os deslocará de todo terreno de luta.

Por isso, a tarefa da militância revolucionária é clara: organizar, formar e acumular forças no seio do povo trabalhador. Recuperar os sindicatos, associações de moradores e centros estudantis como espaços de poder local a serviço de nossa classe, e não como apêndices eleitorais, nem para satisfazer interesses particulares. Avançando – a partir daí e do desenvolvimento de uma força militante capaz de gestar as bases de um partido de classe, de combate e de quadros políticos preparados – na construção consciente de uma alternativa revolucionária.

FINALMENTE…

As eleições são o caminho dos que não têm caminho. É hora das vontades e forças políticas que ainda cultivam uma vocação revolucionária dirigir suas intenções no caminho da construção real com nossa classe, sob um projeto e uma direção revolucionária.

Como dizia Bautista van Schouwen[7]: “o caminho (dos revolucionários) são as massas”.

Não há saída para a classe trabalhadora na alternância eleitoral entre progressistas e reacionários. A tarefa central não é eleger administradores do Estado burguês, mas sim reconstruir uma força política própria, independente, com enraizamento nos territórios, nos locais de trabalho e estudo. A história não se define nas urnas, mas sim na correlação real de forças entre as classes em conflito.

A luta pela emancipação não se delega nem se posterga a cada quatro anos. Se constrói de maneira consciente, organizada e coletiva, no seio da classe trabalhadora, disputando o poder real ali onde se produz e reproduz a vida social. Essa é a tarefa do momento histórico e o desafio político que enfrentamos.


Notas do Tradutor (N.T)

[1] Gabriel Borić Font, atual presidente do Chile; José Antonio Kast Rist, conhecido como JAK, advogado e político chileno de origem alemã, candidato à presidência do Chile; Jeannette Alejandra Jara Román, ministra do Trabalho e Previdência Social sob o governo Boric entre março de 2022 e abril de 2025, militante do Partido Comunista do Chile (PCCh), atual candidata às eleições contra Kast.

[2] Levante popular ocorrido no Chile com aspectos insurrecionais semelhantes às jornadas de junho de 2013 no Brasil.

[3] Franco Aldo Parisi Fernández, engenheiro comercial e economista chileno, social-liberal, candidato à presidência em 2013.

[4] O termo “lumpemproletariado” (do alemão Lumpenproletariat: “seção degradada e desprezível do proletariado”, de lump ‘pessoa desprezível’ e lumpen ‘trapo, farrapo’ + proletariat ‘proletariado’), ou lumpesinato, ou ainda subproletariado, designa, de acordo com Marx e Engels, a população situada socialmente abaixo do proletariado com direitos sociais. Pessoas marginalizadas.

[5] Administradoras de Fundo de Pensão, previdência privada.

[6] Em mapudungun “a terra ao redor”, território histórico Mapuche que abrange as partes centrais do Chile e da Argentina.

[7] Bautista van Schouwen Vasey, médico, um dos fundadores do Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR), a organização guerrilheira chilena que resistiu inicialmente ao golpe militar de Augusto Pinochet em 1973.

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