Por Antônio Galego, diretor-geral do jornal O Amigo do Povo.
Brasil central, 22 de maio de 2023.
Índice:
1 – Três momentos históricos “perdidos”: a ruptura anti-governista, o insurrecionalismo de 2013 e o retorno do cão arrependido
1.1 – A CONLUTAS e a chance perdida de avançar na reorganização do proletariado
1.2 – A insurreição proletária de 2013 e um novo ciclo da luta de classes
1.3 – Ascensão do bloco conservador e a capitulação da “esquerda”
1.3.1 – A farsa do golpe de 2016 e a relegitimação da política reformista
1.3.2 – O “Fora Bolsonaro” e o paradigma da troca de governo
1.3.3 – A política liberal-burguesa do “fique em casa” e suas consequências
1.3.4 – A “unidade antifascista” a serviço da conciliação de classes
1.4 – Como as organizações anarquistas nacionais se posicionaram nesses contextos
2 – Algumas questões candentes da política e da organização dos revolucionários
2.1 – A crise do anarquismo brasileiro e a tarefa de construção do partido
2.2 – A tática paralelista dos “sindicatos autônomos” da FOB e a reconstrução de uma linha classista e combativa no movimento de massas
2.3 – A luta ideológica contra o identitarismo e a renovação do “anarquismo de estilo de vida”
2.4 – Quem são os sujeitos da revolução brasileira? A fragmentação da classe, os setores estratégicos e as tarefas dos revolucionários
2.5 – Os revolucionários e a questão nacional brasileira
3 – Um convite à reunificação das forças social-revolucionárias
“Podem estar certos de que o trabalho não será perdido — nada se perde neste mundo — e as gotas de água, por serem invisíveis, nem por isso deixam de formar o oceano.” Mikhail Bakunin
A situação política nacional teve mudanças significativas na última década. Há dez anos atrás estávamos na véspera da insurreição popular de junho de 2013, num contexto social e político explosivo, em que uma semana valia mais que um ano. Desde então houveram mudanças gerais nos agrupamentos das classes e na correlação das forças políticas no Brasil. Vivemos hoje a maior crise da classe trabalhadora e do socialismo desde a redemocratização, uma situação de isolamento e fragmentação que não atinge apenas as organizações anarquistas mas também todas as forças socialistas autênticas, somadas à diminuição desde 2016/2017 do número de greves (série histórica do Dieese) e de ocupações de terras (CPT) e ao fortalecimento do autoritarismo estatal e da exploração dos trabalhadores (seja em seu modelo conservador ou desenvolvimentista). Enfim, vivemos uma situação histórica de defensiva do proletariado.
Nos dirigimos aqui aos velhos e novos militantes que ainda se mantém firmes nas ideias socialistas revolucionárias e na luta classista. Nosso objetivo aqui é apresentar um balanço do último período, tendo como base a experiência em organizações que ajudamos a construir, em especial a UNIPA (União Popular Anarquista) e a FOB (Federação das Organizações Sindicalistas Revolucionárias do Brasil), com base também em análises de conjuntura e das diferentes tendências do movimento de massas. A partir disso pretendemos traçar linhas gerais para a retomada de uma atuação classista e revolucionário. Não haverá futuro se não entendermos nosso passado, onde estão os acertos e erros, não só aqueles que viveram e que acumularam cicatrizes físicas e emocionais, mas também aos jovens militantes.
De onde viemos? De uma trajetória de duas décadas de militância no Distrito Federal, que passam pela formação do MPL (com participação no encontro nacional de 2006, organização de protestos, trabalho de base, etc.), os encontros contra as reformas neoliberais e a formação da Conlutas, intervenção e ruptura com a Conlutas, fundação e expansão da RECC (Rede Estudantil Classista e Combativa), participação das jornadas de 2013, fundação e estruturação da FOB, e uma militância de linha bakuninista desde 2007 através da UNIPA. Não se trata de listar esses fatos como argumento de autoridade, isso seria ridículo (deixamos isso aos vaidosos e pós-modernos do “lugar de fala”), mas ressaltar que as reflexões que seguem são frutos de uma militância real, anônima e compromissada com a causa do povo.
Pensada coletivamente, essa trajetória do início dos 2000 até mais ou menos 2017 apresentou uma certa constância e evolução, quantitativa e qualitativa, com o crescimento nacional do bakuninismo e de uma corrente sindicalista revolucionária, basicamente por conseguir dar respostas corretas às conjunturas e problemas concretos enfrentados nacionalmente e localmente no trabalho militante. O auge da atuação bakuninista foi no levante de 2013. Mas ao longo do governo Temer, e relacionado a um refluxo das lutas que vem desde então, os erros e desvios (políticos, teóricos e organizativos) ficaram cada vez maiores até que se tornarem insustentáveis durante os anos de pandemia e de governo Bolsonaro. As organizações UNIPA e FOB não são mais aquelas que nos doamos de corpo e alma na primeira década dos anos 2000.
Assim, se por um lado partimos da experiência em organizações concretas, e faremos aqui um balanço de seus erros e acertos, por outro não nos limitamos a elas. Essa não é uma carta à UNIPA e a FOB nem aos seus membros. É uma carta aos socialistas revolucionários de forma geral, sobre a crise e o futuro da nossa corrente. E, se, por muitos anos disputamos internamente essas organizações, e desde a nossa ruptura permanecemos em silêncio, achamos que agora é hora de romper esse silêncio, o contexto político exige um posicionamento.
Entendemos nosso esforço com pé no chão, sabemos de nossas limitações (orgânicas e conjunturais), não temos a pretensão de dar resposta sobre tudo, sabemos que o desafio é do tamanho do problema. Nosso esforço é apenas uma parte que se junta a outros esforços valorosos que estamos acompanhando com atenção, que se não estão em completo acordo conosco, perseguem com algumas diferenças o mesmo objetivo ou respondem a inquietações e perguntas muito similares às nossas. Diante do contexto atual, o dever básico dos revolucionários é não se desesperar, lamber a ferida, aprender com os erros e recomeçar a luta.
1 – Três momentos históricos “perdidos”: a ruptura anti-governista, o insurrecionalismo de 2013 e o retorno do cão arrependido
A experiência política que partimos pode ser dividida em três momentos históricos nacionais: 1º) A ascensão de Lula (PT) ao governo federal em 2003 e o movimento sindical-popular de oposição ao governismo tendo a Conlutas como sua maior expressão; 2º) A crise do governismo e do modelo neodesenvolvimentista, que articula-se a um ciclo de lutas populares que se inicia em 2010 e vai até 2017, e tem como auge a insurreição de junho de 2013; 3º) O impeachment de Dilma (PT) em 2016 e a ascensão de forças políticas de direita que articulam um novo bloco de poder neoconservador, tendo como marca a polarização entre Bolsonarismo e Lulismo, a crise pandêmica e a rendição total das burocracias reformistas. É importante fazer um balanço desses momentos e das posições das organizações que interviram neles.
A capacidade de renovação do Lulismo, que culmina nas eleições gerais 2022, que conseguiu recentralizar sob seus interesses e sua agenda “democrática e antifascista” setores que no período anterior haviam se oposto em maior ou menor grau à política petista (como PSOL, PCB, UP, mas também PSTU e outras organizações trostskistas e anarquistas), é a “volta do cão arrependido” para a tutela e segurança do partido e do líder da ordem burguesa. É a aceitação da incapacidade de uma linha de ação revolucionária junto às massas. É a decretação do fim do socialismo como alternativa de massas e como ameaça real no Brasil. Essa crise é resultado do trabalho sujo do reformismo convertido em força contrarrevolucionária, destruindo a unidade da classe trabalhadora com cooptação, repressão, ao passo que atacou os direitos do povo com uma política neoliberal-imperialista[1].
É importante situar que a fundação da UNIPA ocorre em 2003, momento em que uma série de disputas no interior do anarquismo criam as condições de surgimento do bakuninismo e de sua expansão nacional em quase todas as regiões nos anos posteriores[2]. O bakuninismo surge tanto da ruptura com os grupos contraculturais e educacionistas do “campo libertário”, quanto com o ecletismo “especifista” do Fórum do Anarquismo Organizado (FAO, atualmente Coordenação Anarquista Brasileira – CAB), com base em duas formulações centrais: uma teoria da organização política e uma teoria da revolução brasileira.
Os bakuninistas sofreram acusações de sectarismo, radicalismo, e as previsões de seu isolamento, de seu fim ou mesmo de sua conversão ao bolchevismo (sic!), mas a convicção de estar assumindo uma linha correta superou as ilusões de quantidade e a histeria do “Clube Libertário” (Comunicado UNIPA nº.2) Essa firmeza de atuar “contra tudo e contra todos”, apenas se importando com a causa do povo e a revolução, foi fundamental e se consolidou em um novo estilo de militante anarquista, disciplinado e dedicado de corpo e alma à luta de classes.
1.1 – A CONLUTAS e a chance perdida de avançar na reorganização do proletariado
A fundação da UNIPA coincide com o primeiro governo Lula e seu pacote de reformas neoliberais (trabalhista, previdenciária, universitária, etc.), momento em que se aprofunda a atuação bakuninista no interior do movimento de massas, em especial nos processos de ruptura sindical e estudantil com a CUT e a UNE, que darão origem à CONLUTAS e CONLUTE. Diversos comunicados, jornais e teses foram escritas nessa época com o objetivo de disputar o movimento de massas antigovernista para uma linha classista e combativa, contra a linha “oportunista de esquerda” hegemônica no campo antigovernista representada pelo PSTU e contra o “oportunismo de direita” representado pelo PSOL.
O objetivo desse duplo combate (contra o governismo da CUT/UNE e contra o reformismo/oportunismo no interior da CONLUTAS) visava contribuir com a realização das tarefas necessárias à reorganização da classe trabalhadora e a construção de um sindicalismo classista e combativo, tarefas que PSTU/PSOL deixavam claro que eram incapazes realizar até as últimas consequências por suas posições reformistas e oportunistas, e que os governistas do PT, PCdoB, CUT, CTB e UNE eram inimigos declarados.[3]
Ao longo de todo o processo de atuação na CONLUTAS, apesar das duras críticas e disputas, os bakuninistas praticaram uma ampla unidade na luta, participando ativamente de manifestações, ocupações e greves locais e nacionais, construindo oposições unitárias e inclusive defendendo a construção da CONLUTAS em categorias onde o próprio PSTU optava por alianças com os governistas do PT e PCdoB para alcançar cargos (sabotando a estratégia geral em nome de uma tática sindical oportunista e burocrática).
A política de unidade também se aplicou ao interior da CONLUTAS, com a formação de um Bloco Revolucionário que se unia taticamente contra a política da direção majoritária. Participaram do Bloco camaradas de organizações marxistas como Liga Bolchevique Internacionalista (LBI), Coletivo Pensamento Radical (CPR), militantes e organizações sindicais e estudantis de base, etc. Além disso, a UNIPA construía alianças táticas com organizações fora da Conlutas que estivessem envolvidas em lutas concretas e que partilhavam orientações e objetivos em comum (maoístas, trotskistas, sindicalistas, etc.).
Em 2009 ocorre no Rio de Janeiro o Congresso Nacional dos Estudantes (CNE). A partir de uma atuação classista e combativa no movimento estudantil e diante do avançado grau de degeneração do PSTU que nesse congresso liquida a CONLUTE e cria a ANEL (Assembleia Nacional dos Estudantes Livre, já aberta a correntes do PSOL de dentro da UNE!), os bakuninistas disputam o congresso com tese[4], intervenções nas plenárias e GTs e convocam os participantes para uma Plenária paralela que reúne dezenas de delegados e termina com a fundação da RECC, que se torna uma corrente nacional dirigida pela UNIPA.
A tendência ao paragovernismo do PSTU e PSOL foi seguida no movimento sindical e popular. Em Santos, em 2010, o Congresso da Classe Trabalhadora (CONCLAT) aprovou a liquidação da CONLUTAS e criação de outra entidade: a CSP-Conlutas. Os bakuninistas também disputaram com tese[5], intervenções e a construção (junto ao bloco revolucionário) de uma Plenária paralela que reuniu dezenas de delegados proletários do CONCLAT. Essa Plenária termina aprovando a criação de um fórum de oposições e sindicatos combativos, que depois seria chamado de Fórum de Oposições pela Base (FOB).
Se encerrava um ciclo. Em 2010 já não havia mais possibilidade de uma política antigovernista coerente na ANEL ou na CSP-Conlutas. O PSTU sabotava o projeto inicial em nome dos acordos de cúpula e cortejos eleitoreiros com o PSOL. Historicamente o oportunismo de esquerda do PSTU teve essa posição dupla: ao passo que foi essencial para impulsionar e dirigir uma oposição classista de massas aos governos do PT (organizando encontros e ações direitas com dezenas de milhares já no 1º Governo Lula), não apontava para uma estratégia de ruptura com a política reformista-eleitoreira e com o sindicalismo de Estado. Essa contradição poderia ter sido resolvida de outra forma, mas a tendência histórica do PSTU foi a capitulação cada vez maior ao oportunismo de direita e ao paragovernismo do PSOL e da INTERSINDICAL. O que não avança, retrocede. Como não aprofundou a ruptura com o reformismo e com o sindicalismo de Estado, a tendência ao recuo foi fatal.
Por outro lado, o papel histórico da INTERSINDICAL foi enfraquecer a CONLUTAS sabotando o movimento de ruptura com a CUT/UNE que se alastrava pelo país, com a política centrista de atuar “dentro e fora”, gerando confusão e desviando as energias de reorganização. Daí surgiu o termo “paragovernista”[6], e o PSTU foi cedendo até passar de mala e cuia ao paragovernismo junto da INTERSINDICAL, Oposição de Esquerda da UNE, e outros.
As mudanças conduzidas pelo PSTU não atendiam às necessidades da luta de classes e sim a estratégia eleitoral do PSTU em se aliar ao PSOL, o que envolvia negociações e concessões políticas. Essa linha oportunista teve um alto preço, com o retorno hoje do PSTU à UNE, o enfraquecimento da CSP-Conlutas, e uma série de rupturas à direita no PSTU que se filiaram ao PSOL[7]. Como a realidade mostrou de forma gritante, em 2013 as necessidades organizativas e políticas das massas trabalhadoras eram outras, e o auge na luta de classes no século XXI representou o auge da capitulação de PSTU, PSOL e demais partidos de “esquerda”. Voltaremos a isso mais a frente.
Alguns balanços em relação a linha bakuninista nesse período:
1) Se não fosse a UNIPA o anarquismo teria pouca ou nenhuma intervenção nessa conjuntura da luta de classes. Os grupos e individualidades “libertárias” seguiram editando seus zines e cartas de princípio, repetindo jargões, agindo a reboque em um momento ou outro das lutas de massa, incapazes de disputar os rumos do movimento e acumular forças, e muitas vezes apoiando os governistas e paragovernistas porque eles pareciam mais “horizontais” e criticando os antigovernistas mais “autoritários”. O FAO (hoje CAB) teve uma postura centrista desde o início, própria do seu ecletismo e oportunismo pragmático, nunca assumiu uma posição antigovernista, terminando por construir a Intersindical e a UNE.
2) Até 2010 a UNIPA teve um crescimento importante, acima da média dos setores combativos da época (LER-QI, LBI, MEPR, FAO, etc.). Saiu de um grupo estadual para uma organização nacional, com uma corrente estudantil nacional (RECC) e uma proto-corrente sindical (FOB). E isso por dois motivos: a) por não cair num paralelismo autoproclamatório (característico dos maoístas no período), intervindo em entidades e fóruns, sindicatos, grêmios e encontros nacionais; b) por não limitar sua atuação a disputa das entidades oficiais como propunha a análise da “crise de direção” e a tática “exigência e denúncia” dos trotskistas. Ou seja, conseguiu articular a disputa da direção do movimento à construção das lutas e do trabalho de base independente. A previsão dos revisionistas libertários de “isolamento e extinção” da UNIPA ficou longe, e o fantasma do bakuninismo (que “não existe”, dizem até hoje os ecléticos da CAB!) estava cada vez mais forte. Os bakuninistas não apenas tinham sido excomungados, haviam rompido conscientemente com o Clube Libertário, e isso foi um fator essencial pro desenvolvimento do anarquismo brasileiro e sua ligação com as lutas populares.
3) Algumas teses importantes foram formuladas pela UNIPA nesse período. Além das teses fundamentais sobre o bakuninismo e a revolução brasileira, podemos destacar: a) A defesa da Central de Classe (em oposição a ideia de central sindical), que se fundamentava na crítica a burocracia e aristocracia sindical com a necessidade de incorporar numa Central amplos setores estratégicos e desorganizados da massa trabalhadora, especialmente o proletariado marginal, o campesinato e os estudantes pobres; b) A tese sobre o desenvolvimento dependente do capitalismo brasileiro, do papel dos governos do PT para um modelo neodesenvolvimentista e, internacionalmente, da etapa de acumulação ultramonopolista do capital; c) A tese sobre a divisão de classes no interior do estudantado brasileiro e, consequentemente, colocando a tarefa de construir uma corrente estudantil-proletária em oposição às correntes estudantis reformistas e policlassistas; d) A tese sobre a articulação entre luta econômica e luta política, afirmando a capacidade revolucionária dos movimentos de massas e não apenas do “partido político”, rompendo assim com a tese socialdemocrata/comunista que as separa e subordina a classe e suas organizações ao Partido/Estado.
1.2 – A insurreição proletária de 2013 e um novo ciclo da luta de classes
De 2010 à 2013 ocorre o início de um ciclo de lutas que terá fim mais ou menos em 2016/2017. Foi um período de ascensão das lutas e que em junho de 2013 arrebenta os diques de contenção das burocracias sindicais e partidárias. A acumulação de forças pré-2013 incluiu as lutas indígenas, que se desenvolviam com certa autonomia e por isso conseguiram bater de frente com o latifúndio e grandes projetos extrativistas apoiados pela política petista de “Brasil Potência”; as lutas operárias combativas, as revoltas nas obras do PAC, o aumento em geral do número de greves (e em particular no setor privado); as lutas populares urbanas por transporte, por paz e por moradia, como as contra aumento das passagens, contra a violência policial e contra as remoções; e, por fim, uma radicalização do movimento estudantil e do sindicalismo da educação, tendo como um marco a greve unificada das IFES em 2012 que deu um salto qualitativo, com atos combativos, comando de greve unificado, ocupações de reitorias e apedrejamento do MEC.
As principais lutas desse período se enfrentavam com o modelo neodesenvolvimentista dos governos petistas, demonstrando suas contradições e impondo limites a ele. A ideologia do “Brasil Potência” não conseguia apagar os conflitos sociais, que não só não tinha melhorado como aumentavam. O aumento da terceirização e da superexploração do trabalho, da precarização dos serviços públicos, a falta de terra e de moradia para as massas populares, o aumento da militarização, do encarceramento e da violência policial, da penetração do capital internacional, a continuidade das macropolíticas neoliberais[8], são alguns legados dos governos petistas que se buscava maquiar com políticas públicas assistenciais incapazes de transformar ou sequer melhorar a questão social no Brasil.
Esse entendimento dos rumos da luta de classes, das contradições estruturais do modelo neodesenvolvimentista e do papel cada vez mais contrarrevolucionário das burocracias sindicais e partidárias, foi essencial para uma linha de ação correta dos bakuninistas e alguns setores combativos no Levante de junho de 2013. As formulações políticas e teóricas do período anterior, com a crítica às principais teses do reformismo marxista e libertário, foram essenciais para uma linha correta dos bakuninistas.
Em 2013 quase todas as correntes “marxistas” ou “anarquistas” reproduziram a teoria produzida pelos governistas do PT/PCdoB. Em junho de 2013 ela se apresentou abertamente elitista e contrainsurgente, negando a ação direta de massas e defendendo a República Burguesa. Quatro teses da socialdemocracia/comunismo sobre esse período são centrais: 1) Que a revolta de 2013 era fruto de uma conspiração internacional, do imperialismo estadunidense, ou seja, havia vindo de fora pra dentro; 2) Que os protestos haviam sido criados através das redes sociais, desvinculando os protestos das condições materiais e conflitos sociais (afinal, segundo a ideia dos petistas estaríamos vivendo o paraíso do “Brasil Potência” e da igualdade racial e de gênero); 3) Que junho de 2013 foi o “ovo da serpente” de um golpe de Estado e da ascensão do fascismo no Brasil; 4) Por fim, existe uma abordagem centrista e paragovernista que entende junho de 2013 como um fenômeno “heterogêneo” e “contraditório”[9], tendo como consequência negar um entendimento geral sobre a revolta (nem a apoia, nem a condena!), reforçando portanto as teses que a negam.
Por outro lado, do calor das manifestações e das colunas de autodefesa dos protestos de massas, os bakuninistas também estiveram na linha de frente teórica e política contra a agenda de colaboração de classes de todos os partidos da esquerda reformista (PT, PCdoB, PSOL, PSTU e PCO) e em defesa da natureza de classe proletária, das reivindicações coletivistas e dos métodos de ação direta do levante popular de 2013.
Junho de 2013 foi um levante popular, uma insurreição. A UNIPA foi a primeira organização a caracterizar J13 dessa maneira. E dissemos mais: J13 foi, acima de qualquer coisa, uma insurreição do proletariado marginal (…). Isso significava que J13 expressava contradições de classe do chamado “neodesenvolvimentismo”, à época a política econômica do bloco partidário PT/PMDB. (UNIPA, Comunicado nº51, 2017).
Junho de 2013 abriu um novo ciclo da luta de classes. Depois do levante novas lutas e sujeitos assumiram um protagonismo importante, se enfrentando com as forças da ordem e seus auxiliares da pequena-burguesia de esquerda e de direita. Alguns exemplos desse salto político foi a greve de massas da educação do RJ em outubro de 2013, a greve dos garis em 2014 e as greves de rodoviários contra as direções sindicais em vários estados; As lutas e movimentos por direitos do povo que se uniram pela bandeira “Não Vai ter Copa” em 2014; As milhares de ocupações de escolas (2015-2016); Os protestos combativos de massas contra a PEC do Teto de Gastos, em especial o “Ocupa Brasília” em 24 de maio de 2017. Em 2013 o número de greves no Brasil somou 2.050, o maior de toda a série histórica do Dieese, fazendo cair por terra o mito dos protestos de 2013 como um movimento “golpista e fascista” da classe média. O que houve foi uma ofensiva proletária. Isso deve ficar claro. O lugar dos revolucionários era ao lado da revolta de massas.
Não iremos aprofundar nos dados e análises[10], não é o nosso objetivo aqui, mas cabe alguns balanços teóricos e políticos desse período:
1) As contradições estruturais e conjunturais do capitalismo dependente brasileiro não haviam sido “mudadas” em uma década de governos petistas, ao contrário, o PT construiu vários mitos (da soberania nacional, da ascensão social e da classe média, da democracia racial e de gênero, da participação social e do ambientalismo, etc.) que não correspondiam a realidade da massa trabalhadora (precarizada e marginalizada) nem às transformações estruturais nas relações de produção e de poder. Apenas uma pequena esfera superior de trabalhadores integrados e com altos salários, e uma pequena-burguesia associada ao Estado, enfim, uma burocracia-aristocracia de trabalhadores, gestores e sindicalistas acederam parcialmente a esse “paraíso petista”. Esse setor elitizado de trabalhadores era uma peça chave pra garantir a governabilidade petista. Apesar das políticas assistenciais e clientelistas orientadas pelo Banco Mundial e FMI, a desigualdade entre as classes e o distanciamento entre a esfera inferior e superior do trabalho aumentou. Os banqueiros, latifundiários, militares, igrejas, industriais nunca tinham lucrado tanto quanto nos governos Lula/Dilma.
2) Antes de 2013, a UNIPA já analisava que essas contradições cedo ou tarde gerariam movimentos espontâneos da massa proletária marginalizada. Mas a análise elitista da direita e da esquerda desconsideravam o protagonismo desse sujeito (ora “manipulados” pelo imperialismo, ora pelas redes sociais, ora pela direita golpista, ora por sindicatos ou partidos). Não apenas em 2013, mas também nos anos seguintes, e inclusive quando já haviam sofrido o impeachment e estavam na oposição à Temer e Bolsonaro, a política de controle e contenção da ação do proletariado marginal foi a marca de todos os Partidos e Centrais.
Nos anos de 2013/2014 os reformistas atuaram em vários graus como forças auxiliares da repressão e perseguição estatal. Como dissemos em 2017: “J13 era inaceitável para os reformistas porque ele era a negação global da política, ideologia e aliança de classes que funda o reformismo brasileiro: a de uma pequena-burguesia dependente do Estado com uma aristocracia-burocracia sindical. (…) O bloco reformista preferiu desmobilizar a resistência e impedir o protagonismo desse novo proletariado. A pequena burguesia de esquerda reafirmou que tem mais medo do novo proletariado que do ‘Golpe da Direita’.” (UNIPA, Comunicado nº51, 2017). Essa característica de classe (pequeno-burguesa) da esquerda, que como disse Bakunin está acima dos interesses autoproclamados “socialistas e democráticos”, se reafirmou cabalmente durante a sua capitulação ao governo Bolsonaro.
3) A UNIPA foi uma das poucas organizações que durante e depois do Levante Popular de 2013 defendeu tão radicalmente o seu desenvolvimento e o seu legado contra os ataques dos reformistas e direitistas[11]. Os indivíduos e organizações de “esquerda” confrontados com a intensidade do conflito social e com as contradições próprias de um movimento insurrecional, foram incapazes de compreender a profundidade e de impulsionar/disputar a construção do Levante. O que houve foi um giro ainda mais à direita, mesmo os que se colocavam como oposição de esquerda ao PT se alinharam à política governamental que consistia em deslegitimar a autodefesa e a violência das massas, de combater o “golpismo fascista” dos protestos, de formar “blocos antifascistas e de esquerda” para se diferenciar da massa popular e dos “vândalos”, etc. As posições do PSTU, PSOL e FAO são notórias, mais ainda as do PCO que virou um apêndice da direção do PT, popularizando a tese da ameaça do “golpismo fascista”[12].
Assim, um árduo trabalho de agitação e propaganda revolucionária em defesa da revolta popular e da independência de classe se deu em vários âmbitos, antes e depois de junho de 2013. Esse trabalho, ainda que remasse contra a maré das burocracias sindicais e partidárias, ou seja, da “esquerda”, encontrava eco e espaço nas bases populares e nas categorias em que se atuava. Em uma análise emblemática pós-2013, a UNIPA analisava:
A alternativa para a classe trabalhadora segue sendo manter uma política de independência de classe frente a proposta de colaboração com o PT. A aliança com a burguesia sempre será uma arma apontada contra a classe trabalhadora. O discurso do PT de combate ao “golpismo da direita” é uma cortina de fumaça que esconde sua própria prática. (…) Pois se o “golpismo fascista” significa desenvolver a militarização da política, hoje o que existe de mais próximo de fascismo no Brasil é o próprio PT, que reedita leis da ditadura, prende manifestantes e mata pobres nos campos e favelas. (UNIPA, Os presos políticos do PT, Causa do Povo nº71, 2015)
Assim, a luta por uma política independente da classe trabalhadora passava naquele momento (assim como hoje!) pela luta contra o discurso do PT sobre a ameaça “golpista” e “fascista”. Vejamos ainda o que os bakuninistas pensavam sobre o discurso do “golpismo de direita” e, principalmente, sobre as condições históricas necessárias para um golpe, em um texto publicado em pleno junho de 2013. Nos perdoem a longa citação, mas se justifica:
Diante da recusa das massas ao sistema político burguês, dos instintos anti-estatistas manifestos, eles [PT e PCdoB] tiveram duas medidas políticas: sob o pretexto de “golpe da direita” chamaram todo um movimento espontâneo da classe trabalhadora de “fascista”, que estava sendo ocupado por “conservadores”. Criaram então um mito: a direita estava preparando um golpe.
O argumento de golpe não é novo. Foi apresentado há 4 anos atrás pelo PT e PCdoB para amarrar a oposição de esquerda, que como um sadomasoquista estava pedindo para ser amarrado na defesa do Governo contra a Oposição de Direita. Juntou-se a fome com a vontade de comer. O argumento do Golpe da Direita foi também usado pelo PT/PCdoB durante o mensalão para poder legitimar a defesa do Governo. Ou seja, o “golpe da direita”, a ameaça de “ditadura” são espantalhos, são usados apenas para tentar assustar e afugentar os indecisos da ação de massas. E ao mesmo tempo para defender o Governo Dilma. (…)
Vejamos. Historicamente, um golpe de Estado passa por uma longa preparação. Esse golpe é dado contra sistemas que refletem a contradições de classe dentro do aparelho de Estado, no sentido de impedir que o reformismo abra terreno para a revolução (por reformas sociais de cunho democrático e nacionalista). O PT fez isso? Não. O PT orquestrou o fortalecimento do poder policial e militar, promoveu reformas neoliberais e manteve os movimentos sociais sob “controle”. E agora tenta, junto com o apoio de todos os partidos e todas as centrais sindicais, impor a ordem reformista ao movimento de massas. (…)
Mas a questão mais importante é: o golpe já não estava sendo dado de forma branca? Já não existia uma “ditadura” que sobrevivia sob a “democracia”, na forma dos massacres, das execuções sumárias e etc? Este é o ponto crucial. A democracia brasileira sempre foi restrita (sem expandir os direitos sociais e políticos fundamentais) e tutelada (controlada pelo poder militar e policial), e não somos nós que dizemos isso somente, a própria ciência burguesa o diz. Essa democracia para cima (para burguesia, para a aristocracia sindical e partidária) é a ditadura para as frações empobrecidas do proletariado urbano (os moradores de favelas, subúrbios e estudantes), para o campesinato e povos indígenas. (UNIPA, Entre a debandada e a traição, 29/06/2013)
Ou seja, olhando historicamente o discurso do PT/PCdoB da ameaça de Golpe, Fascismo, Ditadura (como um espantalho para sua autolegitimação como “salvador da Democracia”), vem antes de 2013, mas surtem um maior efeito com o impeachment de Dilma e a prisão de Lula. Após esses dois acontecimentos o PT encontra uma suposta “confirmação” de suas previsões e do seu “destino manifesto” como defensor da democracia no Brasil. Como essa e outras análises mostram, as palavras e conceitos utilizadas pelos petistas eram parte de uma disputa pelo poder do Estado e não um compromisso com a verdade e com as massas. Ao passo que a polarização lulismo x bolsonarismo aumentava, tais palavras foram perdendo um sentido de análise (assim como revolução, militância, comunismo, fascismo, golpe, etc.). O PT estava sendo ameaçado de um “golpe”, mas seguiu se aliando com os “golpistas e fascistas”, e mesmo depois de sofrer o impeachment seguiu até hoje a mesma política de conchavos com os seus supostos inimigos.
Ainda sobre a defesa política da revolta de 2013. Em relação aos símbolos nacionais utilizados pelas massas em 2013, a UNIPA corretamente indicou que associar a identidade de setores das massas com a bandeira e o hino nacionais como sendo “fascistas” era um erro grave e oportunista de uma esquerda que havia abandonada a muito tempo uma política internacionalista e classista e se valia agora de um “principismo” hipócrita pra condenar a luta dos trabalhadores e apoiar a repressão estatal:
As massas caminham em direção à bandeira do Brasil, em direção ao hino nacional não por serem “nacionalistas conversadoras”, nem mesmo por terem uma plataforma, mas por serem esses os símbolos que unificam a grande maioria. Como os reformistas liquidaram a política de classe, a ideia classista e internacionalista não está difundida. Mas o povo, por suas ações, mostra seu viés revolucionário: enfrenta os maiores símbolos da repressão, o poder legislativo, o poder executivo, o caveirão, o Bope e o Choque, a Cavalaria como vimos no Rio, em Belo Horizonte, São Paulo, Fortaleza e diversas cidades.
(…) não é o momento de confrontar essa identificação, mas dar ao que a massa traz consigo um conteúdo revolucionário. O alegado “internacionalismo” dos Partidos e Centrais é uma fraude. Eles estão tentando encobrir o elitismo da aristocracia sindical e partidária com a manta do internacionalismo. Qual foi a ação internacionalista desses setores? Não conseguem sair do corporativismo mais torpe. (UNIPA, Entre a debandada e a traição, 29/06/2013)
Em relação as acusações, por parte dos Partidos e Centrais de esquerda, dos protestos serem “autoritários” e isso ser culpa do “apartidarismo” pregado pelos “anarquistas”, um conflito originado por causa dos casos de manifestantes que quebraram ou tomaram bandeiras de partidos durante a revolta de junho de 2013, a UNIPA analisou as origens e a solução anarquista para tal problema em uma resposta ao PSTU chamada “Colhendo o que se planta” (19/06/2013). No texto os bakuninistas expõem que a muitos anos os partidos reformistas e marxistas possuem uma relação instrumental com a ideia de “democracia”, se valem dela quando estão na oposição, mas quando estão no poder a atropelam sem cerimônias. Nos movimentos sindicais e estudantis são desrespeitosos e autoritários com as bases. Estão colhendo o que plantaram: autoritarismo. Ainda assim, os anarquistas nunca defenderam o método de proibição de bandeiras.
Qual a solução efetivamente anarquista? Bakunin, Makhno, Durruti sempre foram defensores da liberdade, mas também foram ferrenhos defensores do poder de decisão das bases. Um exemplo: os anarquistas sempre foram ferrenhos opositores da Igreja e da religião. Mas faz parte do programa revolucionário anarquista a liberdade religiosa. O mesmo acontece com a liberdade partidária. É certo que todos devem ter liberdade de expressão nas manifestações populares. Todos devem ter o direito de portar suas bandeiras. Isso é uma necessidade: a autoridade se combate com a liberdade, o autoritarismo não vai levar a uma política revolucionária, mas sim à reformista e reacionária. Ao método autoritário de impor o apartidarismo para tentar combater o reformismo, o anarquismo se vale do método libertário de combater o reformismo, por uma teoria, programa e forma de organização revolucionária de massas. A própria ação irá expurgar os recalcitrantes e conservadores.
Por fim, a UNIPA foi também uma das poucas organizações que defenderam abertamente a tática “Black Bloc”, como ficaram conhecidas as grupos e ações de autodefesa nos protestos. Mas também apresentaram uma crítica de suas limitações como tática de luta fechada em si mesma. Mais uma vez, licença à longa citação, mais do que uma argumentação para os que já estão convencidos ou que se limita apenas à 2013, como o seu próprio título diz é uma formulação importante sobre “Anarquismo e Violência”:
Então como podemos entender a crítica aos Black Bloc? Existe uma crítica burguesa. Essa acha que todos que lutam são criminosos. Mas existe também a crítica da esquerda oportunista que diz que os Black Block, por usarem da violência, afastam as massas da luta. Seu argumento se torna mentiroso por dois motivos: o surgimento da tática Black Bloc no Brasil acompanha a massificação do movimento. Massificação que os burocratas partidários e sindicais nunca tinham conseguido.
Por que a esquerda oportunista ataca o Black Bloc e toda a forma de violência de massa? Porque ela precisa mostrar que respeita os limites da ordem burguesa, que jamais irão criar formas de organização que ameacem de forma real esse poder. Ou seja, a esquerda oportunista e os ricos e poderosos temem o povo, que o povo tente tomar o poder. Essa é a raiz do problema.
Nesse sentido, a tática Black Bloc é apenas uma dentro da história da luta dos trabalhadores. 1º: o Black Block é uma tática, sem essa tática, sem incorporar e defender essa tática não existe movimento revolucionário. A tática do Black Bloc e sua dimensão defensiva e ofensiva, devem ser integrados por uma estratégia revolucionária. A massa de trabalhadores marginalizados está nos ensinando e criando condições para mudanças sociais efetivas no Brasil. Sem o uso dessa tática, da violência de massas, não existe revolução nem ninguém pode se proclamar revolucionário.
Quais os limites da tática Black Bloc? (…) Somente a violência de massas, sem uma organização e um programa não é suficiente. Corre-se o risco de transformar o “meio em fim”. Ou ainda, como aconteceu com certos setores do Black Bloc nos EUA, considerar as ações de violência de massas como uma encenação, para satisfazer o desejo individual de expressão.
Mas também as organizações sindicais que não colocam o problema da violência de massas não conseguem ser um fator revolucionário sério. Grandes levantes populares como o do Equador em 1998, Argentina em 2001, Bolívia em 2005-2006 não assumiram essa estratégia e tática, foram integradas no capitalismo e não conseguiram realizar mudanças sociais. (UNIPA, Anarquismo e Violência, 11/11/2013)
Essa posição é fundamental para perceber a lucidez e coerência da posição bakuninista em relação a teoria e a prática revolucionária. Não apenas sobre a questão da violência de massas nos protestos, mas em relação a todos as questões anteriores e outras que não iremos abordar, a UNIPA e seus militantes cumpriram um papel fundamental, cumpriram em termos gerais o papel que se esperava de militantes revolucionários e anarquistas.
4) O conteúdo antiburocrático da revolta de junho de 2013 tem origem e resultado naquilo que os bakuninistas chamaram de “ativismo”[13]. O ativismo, com sua maior expressão no Movimento Passe Livre (MPL), apresentava desde o início um elemento dúbio: se por um lado favoreceu sob determinadas condições históricas a mobilização de setores da juventude e do povo para a além das amarradas das burocracias sindicais e partidárias, por outro lado interrompia as tarefas posteriores de auto-organização e luta revolucionária da classe trabalhadora. A preparação das jornadas de junho de 2013 e os posicionamentos políticos posteriores dos setores ativistas demonstram o limite desses setores até as suas últimas consequências.
Os bakuninistas fizeram uma importante luta ideológica no pós-2013 contra o ativismo que impedia o desenvolvimento das forças coletivas do proletariado.
O “ativismo”, por sua composição ideológica e organizativa, e procedência de classe, tende, em determinado momento do seu desenvolvimento, a se converter num verdadeiro obstáculo à luta revolucionária e a resistência da classe trabalhadora. Causando, por isso, graves prejuízos às lutas dos trabalhadores, tendo como seu destino final, na melhor das hipóteses, a formação de uma contracultura sectária fechada em si mesma, inútil para as lutas dos trabalhadores (grupos de propaganda, coletivos editoriais e artísticos, pequenos grupos de ação local) e, na pior das hipóteses, organizações capitalistas com retórica de esquerda (empresas individuais, grupos de interesse culturais ou étnicos, cooperativas e comunidades “alternativas” que vivem de uma espécie de empreendedorismo econômico).
Por isso ao “ativismo” só restam dois destinos: negar a si próprio e assumir o ponto de vista geral de classe, se convertendo numa política sindicalista revolucionaria; ou afirmar a si próprio e negar a libertação da classe e dos grupos oprimidos como um todo, degenerando no individualismo liberal. (UNIPA, Anarquismo e Ativismo, 2017)
Hoje podemos testemunhar como o ativismo, ao não “negar a si próprio”, recuou politicamente e se integrou em muitos casos aos partidos da ordem, um grande exemplo é o crescimento do PSOL e do PT. A adesão ao identitarismo burguês e ao oportunismo lulista, mesmo mantendo ainda uma fraseologia e encenação pseudo-radical (na maioria das vezes virtual, ou em pequenos grupos, carente de bases reais) tem sido alguns dos destinos desse ativismo em decadência. Depois de 2013 o ativismo não só não foi superado, como muitas organizações que se propunham conscientemente a fazer essa superação (como é o caso da UNIPA e FOB), diante das inúmeras dificuldades internas e externas, a partir de determinado momento recuaram e conciliaram com a política do ativismo e do identitarismo “libertário” em nome de uma ilusão de quantidade que aqueles grupos pareciam garantir. Mas elas não foram as únicas, a penetração do identitarismo e do pós-modernismo (aspectos do ativismo) acompanhou um fenômeno geral de capitulação da esquerda brasileira e mundial, estimuladas pelas mudanças de “narrativas” em organismos políticos, econômicos e culturais da burguesia imperialista estadounidense[14].
5) Na segunda metade de 2013 a linha de massas bakuninista foi construir um encontro nacional para reunir os militantes e organizações que participaram da insurreição de massas, aproveitando o contexto para retomar a construção da FOB. Assim foi construído o 1º ENOPES (Encontro Nacional de Oposições Populares, Estudantis e Sindicais) em novembro de 2013. Além de reunir mais de uma centena de delegados de todas as regiões do país, de diversos ramos e organizações de base, os dois objetivos centrais desse encontro foram: a) a defesa e aprovação das “Teses por uma Tendência Classista e Internacionalista”, que apresentava as bases teóricas, históricas e programáticas para reconstrução do Sindicalismo Revolucionário; b) Avançar na estruturação nacional e local da FOB, naquele momento praticamente desarticulada.
Essa linha teve bons frutos. As oposições e grupos que atuavam com um caráter de “tendência” no movimento sindical e estudantil e que eram impulsionadas pelos bakuninistas (RECC, ORC, GLP, ACS, etc.) se unificaram organizativamente através dessa reestruturação da FOB em 2013.
De lá até 2017 muitas lutas ocorreram, então em outubro desse ano ocorreu o 2º ENOPES. A principal pauta foi: o sindicalismo revolucionário avançar de uma corrente de lideranças e militantes para se tornar uma alternativa de massas com entidades representativas autônomas que rivalizassem com o sindicalismo de Estado e movimentos reformistas (essa linha estratégica foi chamada de “massificação”). Nesse encontro também participaram mais de uma centena de delegados e ainda observadores internacionais. Após as jornadas de junho de 2013, greves de massas, ocupações de escolas, a oposição de massas ao governo Temer, parecia ser o momento certo pra isso. Parecia ser o momento de dar mais um salto, respondendo a contradição central instalada: de um lado o impulso de luta combativa das bases, do outro o entrave burocrático e pelego dos Partidos e Centrais.
Mas em 2017/2018 a conjuntura mudou radicalmente, com um grande recuo do movimento de massas. Além disso, alguns desvios políticos internos já eram percebidos. Até hoje os desvios internos e o recuo das lutas só aumentaram. Tanto a UNIPA quanto a FOB foram incapazes de responder corretamente a esses dois problemas, um de ordem interna, outro de como se posicionar na nova conjuntura. Escolheram um tolo atalho: transformaram em virtude os desvios e desconsideraram a necessidade de condições objetivas para a “massificação” [15], caindo no idealismo, e para se justificar criaram análises de conjuntura alucinantes onde a “radicalização” e o “novo junho” estavam na esquina[16]. Falaremos mais a frente sobre os erros e as consequências da ideia de lançar supostos “sindicatos” autônomos.
1.3 – Ascensão do bloco conservador e a capitulação da “esquerda”
Se o PT servia tão bem aos interesses da burguesia e das forças armadas, porque sofreu um impeachment e a prisão de seu principal líder? A crise internacional de 2008 foi corroendo aos poucos as bases econômicas e políticas das forças e frações de classe integradas ao bloco no poder. Após 2013, a incapacidade do bloco PT/PMDB de controlar a mobilização popular e ao mesmo tempo conduzir uma nova ofensiva de ataques aos direitos do povo demandada pela burguesia em crise, e a incapacidade de equilibrar as disputas entre frações das classes dominantes, encaminharam o país à crise política e ao impeachment em 2016.
A nova ofensiva burguesa começou ainda no interior do segundo governo Dilma em 2014 (vide a política econômica, repressiva, agrária, educacional, etc. chamada por muitos de estelionato eleitoral). Sempre foi uma ofensiva burguesa em reação a insurreição popular de 2013 e não uma continuidade dela. Entre 2015/2016 as classes dominantes romperam o pacto com o PT e avançaram em uma nova etapa da ofensiva (o “grande acordo nacional”) que envolveu uma nova reforma da previdência, trabalhista, teto de gastos, mais privatizações, medidas militaristas, reforma do ensino médio. Algumas dessas medidas já tinham iniciado no governo Dilma, não esqueçamos da sua simbólica sanção da Lei Antiterrorismo poucas semanas antes do impeachment. Essa foi a linha ultraliberal e militarista (neoconservadora) que orientou o governo Temer e depois Bolsonaro.
Não pretendemos aqui chover no molhado, repetir toda as críticas frescas em nossa memória aos governos Temer e Bolsonaro (2016-2022), a todos os retrocessos visíveis nas áreas social, ambiental, agrária, militar, trabalhista e, especialmente, na gestão da pandemia de Coronavírus, com uma política genocida que tirou quase 700 mil vidas, espalhando o sofrimento e o luto a familiares, amigos, camaradas que perderam entes queridos e que geraram sequelas emocionais e subjetivas. Tudo isso, mas especialmente a deterioração das condições econômicas das massas, levou a derrota de Bolsonaro nas eleições de 2022 (primeiro presidente pós-redemocratização a não se reeleger). Mas também não podemos personalizar esses retrocessos na figura asquerosa de Bolsonaro, existem elementos estruturais e conjunturais que os garantiram, incluindo a própria capitulação da oposição dos partidos reformistas e liberais.
Vários elementos importantes compõem essa conjuntura de ofensiva burguesa que vai de 2016 até os dias atuais, elementos que geraram lutas de ideias e ações entre as correntes no movimento popular, bem como de setores liberais e conservadores. Essa conjuntura e a forma como as correntes se posicionaram frente aos dilemas surgidos é fundamental para entender aonde estamos e o futuro da nossa corrente. Resumimos as principais questões gerais enfrentadas no movimento de massas: 1) A questão do “golpe” de 2016; 2) A palavra de ordem “Fora Bolsonaro”; 3) A política burguesa do “fique em casa” durante a pandemia; 4) A “unidade antifascista” para a vitória de Lula e a posição das organizações de esquerda.
1.3.1 – A farsa do golpe de 2016 e a relegitimação da política reformista
Com o impeachment em 2016 a tese petista do “golpe” parecia confirmada. Diversas organizações aderiram a ela, incluindo a UNIPA que irá fazer uma autocrítica: “Nós também subestimamos a ofensiva burguesa. Nos parecia que o caminho mais provável seria desgastar lentamente o PT sem tentar derrubar o governo, aguardando 2018. Hoje, tal ofensiva se mostra sob a forma de um golpe, não um golpe de Estado, mas de um golpe institucional dentro de um Estado de Exceção criado pelo bloco no poder do qual o PT faz parte e que agora quer tirar as funções dirigentes do PT por meio do impeachment” (UNIPA, Comunicado nº46, março de 2016). Acreditamos que essa caracterização de “golpe”, mesmo que chamado de institucional ou parlamentar, foi um erro que teve um alto custo político, um custo que está sendo cobrado agora com as confusões e adesão da UNIPA/FOB à agenda governista de centralidade ao combate da “ameaça golpista fascista”. Expliquemos o porquê.
Apesar de afirmar em 2016 que não foi um “golpe de Estado” e sim um “golpe institucional”, no Comunicado nº 63, três anos depois, a UNIPA afirma que “Brasil e Venezuela são os maiores produtores e detentores de petróleo da América Latina e, há anos sofrem com constantes desestabilizações internas. O primeiro passou por um golpe de Estado para aprofundar a agenda neoliberal já iniciada pelo governo PT”. Para além da definição conceitual, que representava ou um deslise teórico ou já uma adesão a tese petista, de todas as formas demonstrava como essa diferenciação (entre golpe institucional ou de estado) era pouco relevante para entender e se posicionar corretamente na conjuntura. Os próprios setores reformistas do PT, PCdoB, CUT, PSOL, etc. usavam indistintamente várias denominações, e o PT unia e dirigia a todos para a agenda da luta contra o “golpismo”.
A análise que definia o impeachment como um “golpe”, com todas as consequências políticas e práticas que isso significa, não foi um erro apenas da UNIPA/FOB, mas de todos os agrupamentos reformistas e revolucionários, com raríssimas exceções, como é o caso do PSTU. O PSTU foi um dos poucas organizações a criticar a farsa do golpe, e por isso foi duramente acusado pelos petistas de “fazer o jogo da direita”.
Podemos dizer que, diante do impeachment e da ascensão do bloco neoconservador, o PSTU deu um giro à esquerda, conseguindo retomar uma posição oportunista de esquerda, ou seja, ao mesmo tempo que resistia à agenda governista do “Não vai ter golpe” e do “Fica Dilma” (e que tinha como pano de fundo retomar o apoio perdido dos movimentos sociais a um novo pacto de conciliação com a burguesia), por outro lado propunha aos movimentos sociais a renovação das ilusões reformistas com a palavra de ordem: “Eleições gerais, já!”. Além disso, apesar da crítica correta a farsa do golpe, tardará alguns anos pro próprio PSTU cair na farsa da “ameaça golpista fascista” de 8 de janeiro de 2023.
No artigo de Bernardo Cerdeira “Não teve golpe” (publicado no site do PSTU em 29/04/2016), a análise é a seguinte:
Nosso partido afirma que há dois campos burgueses em luta, ambos utilizando os métodos sujos dessa corrupta democracia burguesa.
Basta ver quais foram os métodos de luta do governo e do PT para tentar evitar o tal golpe: a utilização da máquina estatal para distribuição de ministérios, cargos e todo o tipo de favores. A principal política do campo governista para enfrentar um suposto golpe foi, e continua sendo, a de utilizar os métodos de corrupção do Estado burguês.
(…) Contudo, a prova definitiva de que não existia nenhum golpe e sim um enfrentamento entre burgueses foi a política do governo para os supostos golpistas caso conseguisse evitar o impeachment na Câmara. Dilma propôs simplesmente a unidade nacional com os setores golpistas. Ou seja, não há nenhuma barreira intransponível entre um setor que defende a democracia e um setor golpista, mas sim uma disputa pelo poder.
Até pouco tempo atrás, o PMDB era o maior aliado do PT. Temer era o vice-presidente que consolidava esta aliança. PSD, PP e PTB eram da base de sustentação do governo. Segundo o PT, nenhum era golpista ou de direita. O que aconteceu é que, diante da crise econômica, o governo perdeu apoio social, pois vem atacando os trabalhadores. Assim, não consegue mais enganar e “domesticar” as massas para que essas aceitem as medidas desfavoráveis. Por isso, o PT não tem mais serventia para a burguesia. Essa é a explicação de por que motivo os partidos burgueses abandonam o governo. Ratos abandonam navios antes que afundem.
A luta política na democracia burguesa não é um passeio no parque ou um torneio literário, são disputas pelo poder que possuem avanços e recuos para as forças envolvidas. Como todo o resto, estão sujeitas às pressões da conjuntura, ainda mais num contexto de crise econômica e política que o Brasil vivia. O impeachment é um mecanismo previsto na Constituição, e um mecanismo brando, diga-se de passagem, perto de tantas quedas de presidentes na América Latina que ocasionam confrontos violentos, prisões e assassinatos políticos. O processo de impeachment de Dilma demorou oito meses, de dezembro de 2015 à agosto de 2016, com todas as instituições funcionando normalmente, incluindo os partidos e a mídia, com direito a defesa e a aceitação do resultado pelo PT (muito diferente dos casos de Lugo no Paraguai, Zelaya em Honduras ou Castillo no Peru).
Após o impeachment o PT seguiu governando estados, seguiu com seus deputados e bancadas, a ex-presidente Dilma sequer ficou inelegível! O PT seguiu existindo, e mais, seguiu se aliando com os “golpistas” e “fascistas”[17], e se em 2016 estava em decadência e deslegitimado, a ascensão neoconservadora e a polarização instaurada foram um elixir para relegitimar o Lulismo e o PT. Não houve golpe no PT, nem em Dilma, nem na esquerda em geral. O que existia e se aprofundou com a polarização burguesa Bolsonarismo x Lulismo é a disputa entre dois projetos de gestão do capitalismo dependente brasileiro.
No mesmo texto, Bernardo Cerdeira do PSTU analisa o objetivo e as consequências dessa tese do golpe para as organizações de esquerda:
Por que organizações de esquerda que até pouco tempo atrás eram oposição ao governo Dilma passaram a sustentá-lo, ainda que de forma envergonhada sob o manto da defesa da democracia? Durante 12 anos, o PT teve fortes aliados entre os empresários e grandes partidos burgueses como o PMDB. Naquele período, desprezava e até evitava o apoio de setores de esquerda críticos aos seus governos. Na verdade, podia se dar ao luxo de tê-los como oposição. Quando os setores e partidos burgueses o abandonaram, e o governo começou a afundar, qualquer apoio passou a ser importante. Principalmente a esquerda e os movimentos sociais que não estavam no governo e, portanto, não estavam diretamente contaminados com o esquema de corrupção. Por isso, o PT, a CUT e a UNE lançaram a ideia da Frente Brasil Popular, e o MTST impulsionou a Frente Povo sem Medo. É a forma de tentar sustentar o governo e construir uma alternativa eleitoral que acomode a todos e limpe a imagem enlameada do PT.
Poderíamos citar outras análises importantes realizadas por militantes e organizações socialistas[18]. Fazemos justiça as análises corretas que o PSTU sustentou diante da histeria e do catastrofismo político naquele momento histórico (apesar de, como dissemos, discordarmos das soluções próprias do seu oportunismo). A análise sobre a “farsa do golpe” que eles sustentaram nos ajuda hoje a fazer um balanço autocrítico e corrigir a nossa análise: Não erramos por “subestimar” a possibilidade de um golpe! Erramos por superdimensiona-lo e chama-lo do que nunca foi! Caímos em vários momentos nas armadilhas do catastrofismo e maniqueísmo político tão útil aos interesses da política reformista-burguesa em crise.
1.3.2 – O “Fora Bolsonaro” e o paradigma da troca de governo
Em nenhum dos governos do PT a palavra de ordem dos setores revolucionários e classistas foi “Fora Lula” ou “Fora Dilma”. A linha de agitação e organização das lutas era impulsionar as reivindicações materiais dos trabalhadores e vincular elas às lutas gerais contra as políticas neoliberais dos governos do PT, assim como vincular essas lutas à tarefa política-democrática de destruir as burocracias e direções pelegas no movimento sindical-popular, abrindo espaço para a reorganização da classe com a tomada do controle das bases sobre suas próprias entidades (auto-organização/reorganização). O antigovernismo classista tinha um conteúdo e uma forma absolutamente diferentes da oposição burguesa e suas disputas palacianas.
Mas os reformistas aplicam há muitos anos essa política de troca de governo: Fora Sarney, Fora Collor, Fora FHC… Depois de virar governo federal em 2003 essa política se deslocou para os governos estaduais e municipais e outros órgãos do Estado. Em lutas locais como o “Fora Arruda” no DF (em 2010) os bakuninistas já apresentavam os limites do paradigma da troca de governo, enquanto os partidos reformistas (PT, PCdoB, PSOL e PSTU) comemoravam as supostas vitórias da pauta anticorrupção[19]. Quando Dilma sofreu o impeachment todos os reformistas se localizaram na oposição e voltaram a dar grande importância e centralidade para o “Fora Temer” e “Fora Bolsonaro”.
Com isso os reformistas colocam o movimento popular a reboque das instituições democrático-burguesas, ao invés de dirigir a força das massas para lutar diretamente contra a política anti-povo desses governos. No fim, os governos mudam, mas a mesma política se mantém ou até piora. Diante da corrupção e da crise política, a burguesia aprendeu muito bem a ceder os anéis para não perder os dedos. O Rio de Janeiro é o maior exemplo dos resultados miseráveis desse paradigma reformista de troca de uns governos por outros: nenhuma melhoria das condições materiais da classe trabalhadora carioca pode ser verificada com tantas trocas de governos e prisões de políticos nas últimas décadas, ao contrário, a miséria e violência contra as massas só aumentam a cada ano.
Durante o início do governo Temer, apesar dessa linha reformista, a oposição contava com reivindicações populares concretas e mobilização de massas (que em grande medida ocorriam à revelia dos reformistas do PT/PCdoB), como foram as ocupações de escolas e os protestos contra o Teto de Gastos e a Reforma da Previdência. Foram essas lutas que impediram a aprovação da reforma da previdência naquele momento, mas que depois foi aprovada por Bolsonaro sem resistência. O ascenso das lutas que começou um pouco antes de 2013 terminou em 2017. Um marco desse refluxo foi a recusa de todos os governistas em seguir impulsionando a massificação e radicalização que tendia a aumentar após o “Ocupa Brasília” (24/05/2017), um protesto que reuniu mais de 100 mil manifestantes na esplanada, entrando em conflito com a polícia, com queima de carros e ministérios, e sendo reprimidos com uso de armas letais e terminando com o decreto de Garantia da Lei e da Ordem na capital federal[20].
A política da oposição reformista-lulista durante os governos Temer e Bolsonaro foi marcada pela renúncia da ação direta das massas e a adesão à tática de oposição parlamentarista, aonde a centralidade da disputa com o bloco neoconservador estava nos conchavos e lobbys políticos por cima, assim como no desgaste midiático e virtual dos escândalos morais e culturais do bolsonarismo. A memória de junho de 2013 ainda estava fresca em 2017, uma nova faísca poderia romper a ordem burguesa “democrática”. O PT sabia que para voltar ao poder ele precisava demonstrar não só sua obediência a ordem mas sua capacidade de controlar o restante do movimento popular. Era preciso vender o peixe novamente pra burguesia nacional e internacional, se demonstrando um parceiro estável e eficiente para a manutenção da ordem, ao mesmo tempo associar Bolsonaro a instabilidade e ineficiência em gerir o sistema.
Assim, com a crise pandêmica e social que se aprofundou, colocar a classe trabalhadora e a ameaça insurrecional como cartas fora do baralho foi fundamental para o Lulismo retomar a confiabilidade da burguesia, das forças armadas e do imperialismo. Era preciso acima de tudo desmobilizar as lutas diretas (greves, ocupações, protestos) do proletariado por suas reivindicações materiais (por saúde, salário, terra, moradia, paz, educação, etc.), impedindo o protagonismo direto das massas populares como sujeito de mudanças e conquistas. Vinte anos depois a nova “carta aos brasileiros” de Lula/PT não precisou ser escrita em papel, foi escrita com o exemplo de capitulação e subserviência nos governos Temer e Bolsonaro.
Mesmo com o desgaste gigantesco de Bolsonaro durante a pandemia os Partidos e Centrais se negaram a impulsionar a resistência de massas. Ou o PT lideraria um impeachment “ordeiro”, dirigido por cima, nos moldes daquele que ele próprio sofreu com o Fora Dilma, ou desgastaria o governo Bolsonaro até as eleições de 2022, sendo que esta última opção sempre foi a majoritária. De qualquer forma, tanto o “fora Bolsonaro” via impeachment quanto via eleições significavam uma troca de governos nos marcos das instituições, dirigida e controlada pelas classes dominantes. A disputa entre os que defendiam o Fora Bolsonaro através de um impeachment (PSTU, UP, setores do PSOL e de movimentos sociais) e aqueles que defendiam através das eleições de 2022 (PT, PCdoB, PSB, etc.) faziam um debate no vazio, sem mobilização de massas, ambas estavam reféns da palavra final das classes dominantes.
Nesse contexto, a defesa de um Fora Bolsonaro mais radical, com ação direta, barricadas, greve geral, etc. era uma política que apesar de se diferenciar quanto aos métodos ainda se mantinha em seu conteúdo: reforçando as ilusões democrático-burguesas, dando centralidade à troca de governos e não às reivindicações materiais das massas. Essa política “radical” foi a marca da maioria das pequenas organizações autonomistas, anarquistas e combativas (incluindo a FOB/UNIPA) e se demonstrou incapaz de romper com o reformismo e expor suas contradições. Foi um erro grave. Diante de uma conjuntura de refluxo, quando nem as lutas populares mais básicas estavam acontecendo, enfim, diante da incapacidade notória de “derrubar Bolsonaro pela ação direta”, o ultrarrevolucionarismo dessas organizações se limitou a um discurso não só inofensivo como útil aos objetivos do Lulismo e do reformismo: desgastar o governo Bolsonaro e reforçar a ideia de que a tarefa prioritária era mudar a política/governo para depois, e somente depois, lutar por mudanças sociais e econômicas.
Em consequência dessa linha, durante o governo Bolsonaro foi difundida uma grande mentira: não se podia fazer nada ou reivindicar nada para um governo “fascista”. Não era possível lutar. Primeiramente, o PT/PCdoB usou e abusou do medo como política para afugentar os setores médios que são a base da esquerda. Depois disseram que reivindicar algo ao governo e, por ventura negociar com o mesmo, era reconhece-lo como “legítimo”. A luta dos trabalhadores só poderia ser feita sob um governo “democrático”[21]. Daí que para os reformistas a tarefa central e condicionante de todas as demais lutas era tirar Bolsonaro e colocar o PT ou uma direita “democrática” no lugar. Esse discurso, que só levava a apatia social foi sustentada dia e noite pelas burocracias sindicais e partidárias e depois foi ainda reforçada pela farsa pequeno-burguesa do “fique em casa”. Mas isso era uma negação dos princípios básicos da luta de classes: a classe trabalhadora não escolhe lutar ou com quem lutar, não é uma opção ou um hobby, a revolta é uma necessidade da sua condição de classe, é exatamente nos regimes mais opressivos que a resistência se faz mais necessária, contra um patrão tirano faz-se a greve e a rebelião, isso nunca significou “legitimar” o patrão ou o governo.
Assim, a canalização de toda a indignação e desespero de setores populares e das classes médias para retomar a legitimidade do Lulismo (tão enfraquecido desde 2013) como a única esperança para mudar o cenário nacional exigia a negação sistemática do poder de mudança da classe trabalhadora por si mesma. O líder iluminado precisava de um povo débil e ignorante. Uma coisa temos que reconhecer, a capacidade e a energia despendida pelo PT para manipular e desmobilizar o movimento sindical-popular. A alegada preocupação com a “democracia” era uma fraude. Isso nunca impediu o PT/PCdoB de se aliar ou fortalecer os mais descarados inimigos do povo. A apatia e a desmobilização só favoreceram o caminho para o genocídio e retirada de direitos, sem nenhuma garantia de mudança agora com Lula. A vitória do Lulismo em 2022 foi pavimentada pelo desespero, pelo pânico e pela negação do princípio mais básico do socialismo: “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”.
Então qual era a alternativa para as organizações classistas e revolucionárias? Por mais difícil que fosse, a oposição classista devia ter insistido na construção das lutas pelas reivindicações materiais dos trabalhadores, fortalecendo os espaços de organização e luta, as assembleias, greves, organizando a resistência por direitos em todos os lugares possíveis[22]. Deveria ter aprendido com o exemplo do movimento de oposição antigovernista e classista aos governos Lula e Dilma (2003-2016), que agia nas contradições concretas oferecendo uma alternativa de luta aos setores afetados.
A política classista, que cresce desde as bases e a partir das reivindicações mais elementares da classe, é a verdadeira matéria prima, é o caminho, para recolocar a classe trabalhadora como um agente sério e independente nas definições dos rumos do nosso país. Interligar as lutas, elevar a consciência e a capacidade organizativa, preparando assim uma capacidade de ação direta e autonomia cada vez maior, é a tarefa fundamental da vanguarda socialista revolucionária. Não foi isso que ocorreu durante o governo Bolsonaro, e pra piorar o erro permaneceu após a vitória de Lula. A esquerda lulista nega a centralidade das lutas materiais da classe trabalhadora e elege agora como “prioridade”, como “inimigo principal”, a extrema-direita e o “golpismo fascista”. É a continuidade da capitulação sob novas roupagens.
Por fim, isso significa que os revolucionários não devem dizer ou fazer nada frente a crises políticas e quedas de governos? Não mesmo. Significa saber diferenciar a troca de um patrão da conquista do poder proletário, e que a troca de um patrão por outro, ainda que traga mudanças, não mudará o essencial. Significa saber que a derrubada de um governo burguês por meio de métodos proletários (ação direta, insurreição, revolução) exigem condições materiais e coletivas próprias para tal e não apenas intenções e discursos “radicais”. Assim, a derrubada de um governo assim como a expropriação da burguesia pelos trabalhadores é, desde um ponto de vista classista e revolucionário, a culminância do acúmulo de forças (com um sem-fim de lutas, assembleias, conselhos de fábrica, autodefesas, etc.) que desemboca em uma etapa de ofensiva do proletariado contra seus inimigos de classe.
Comemorar a troca de governos burgueses por outros como “vitórias populares”, sem analisar os limites e os perigos de tais fatos, é desarmar ideológica e politicamente a nossa classe para as tarefas na luta de classes. Bakunin alertava no século XIX os enganos das reformas e revoluções estritamente políticas, não se iludia com elas ou com a “radicalidade” que podiam apresentar em sua aparência. Nas várias crises políticas da América Latina, em que os presidentes caem uns após os outros, fruto das insurreições populares e indígenas, o papel dos revolucionários é participar e impulsionar essas lutas não pra torna-las um fim em si mesmas, mas para disputa-las com uma estratégia e um programa revolucionários, para passarem dos levantes periódicos à revolução social destruidora do Capital e do Estado.
1.3.3 – A política liberal-burguesa do “fique em casa” e suas consequências
A reprodução total ou parcial da política burguesa do “fique em casa”, sustentada por organismos internacionais e imperiais, bem como pela oposição Liberal e Lulista no Brasil, semeou a apatia, o individualismo e, principalmente, abandonou a sua própria sorte amplas massas do proletariado marginal urbano e do setor privado. Durante os vários anos da pandemia a massa do proletariado foi atacada de todas as formas pela política burguesa, direitos básicos negados, demissões em massa, salários rebaixados, políticas repressivas de “lockdown” e a ameaça de morte a todo instante, seja pelo vírus ou pela fome.
Os instintos de autopreservação (medo) de setores das “classes médias” foram direcionados para o seu lado mais individualista e repressivo, transformando a esquerda pequeno-burguesa na principal base de reprodução e justificação de políticas estatais e capitalistas repressivas que se chocavam com os interesses materiais de uma maioria da população totalmente desprovidas das condições de “ficar em casa”. Por outro lado, um sem-fim de inciativas de apoio mútuo conhecidas e anônimas, maiores ou menores, floresceram entre os mais pobres. O antagonismo entre as soluções individualistas ou coletivistas frente a pandemia estão diretamente vinculadas aos instintos e necessidades de classe dos sujeitos.
A adesão política ao “fique em casa”, além de ter sido uma linha auxiliar dos interesses burgueses, expôs o caráter de classe da esquerda, hegemonizada por setores da aristocracia-burocracia sindical, de estudantes de universidades federais, de altos funcionários públicos e de frações da pequena burguesia, a maioria com funções secundárias ou improdutivas na economia e na sociedade e por isso mesmo liberados para ficar em casa e serem sustentados pela massa proletária indispensável.
Durante a pandemia a política lulista viveu um momento chave: ao passo que a gestão genocida de Bolsonaro vivia sua pior crise política (iniciando a insatisfação inclusive em setores importantes da burguesia) a política das burocracias de esquerda (que já vinha de antes) de desmobilização e apatia social foi maquiada como uma virtude, ficar em casa falando asneiras e publicando notas de repúdio nas redes sociais virou “militância”, policiar e escrachar as pessoas que saiam de casa virou uma “responsabilidade pela causa”. Enquanto isso, as lutas e ações de apoio mútuo que ocorreram nesse período, e que poderiam de fato colocar os interesses dos trabalhadores em jogo, foram boicotadas ou ignoradas pelas burocracias lulistas.
No momento em que mais precisou o proletariado brasileiro lutou sozinho, com as armas que tinha, em suas famílias, igrejas e comunidades, em uma luta desigual na qual estava condenado a perder: seus entes queridos, seus empregos, suas ilusões. Dizemos e reafirmamos o óbvio: o papel dos militantes revolucionários em momentos de crises humanitárias não é se trancar em casa e seguir as orientações da OMS ou de governos, é ir ao povo, reforçar a associação e a luta organizada dos trabalhadores como “atividade essencial”, defender um programa independente dos explorados, desmascarar os governos e patrões, impulsionar a ação direta e a solidariedade de classe, manter a luta viva. Não foi isso que ocorreu no Brasil, mas foi o que ocorreu em várias partes do mundo, as revoltas populares nos EUA e no Chile durante a pandemia são exemplos disso. Isso não significava desconsiderar as medidas de segurança.
Apesar de certos comunicados da UNIPA críticos à política do “fique em casa” (que na verdade foram mais um resultado da disputa interna do que de uma linha assumida de fato pela organização como um todo) a militância da UNIPA/FOB infelizmente acompanhou o confusionismo da maioria das organizações da esquerda, incapazes de romper com os paradigmas do “fique em casa” e sua sacralização em meio a polarização burguesa entre bolsonarismo x lulismo. A UNIPA/FOB chegou ao cúmulo de se tornarem inoperantes por meses e até ficar por um ano completo sem encontros presenciais por causa da pandemia! Isso é inaceitável. A vanguarda não pode abandonar as massas.
1.3.4 – A “unidade antifascista” a serviço da conciliação de classes
Desde a vitória eleitoral da chapa Lula-Alckmin a oposição neoconservadora se fez sentir, primeiro com os fechamentos de estradas, depois com os acampamentos nas portas dos quartéis do exército e, por fim, com uma passeata que culminou com a ocupação dos três poderes da República no dia 08 de janeiro de 2023. Estamos desenvolvendo um esforço contínuo de análise desses fatos da conjuntura, seja através das publicações regulares do jornal O Amigo do Povo ou de publicações avulsas no site do jornal[23].
O foco da nossa crítica tem sido:
1º) Não existiu no último período a ameaça real de um “golpe fascista” no Brasil e, pelo outro lado, tampouco de uma “ameaça comunista”, o que existem são dois blocos burgueses que disputam o poder do Estado;
2º) O catastrofismo político e a histeria das esquerdas frente as ações bolsonaristas demonstram a fragilidade de suas análises (que trocam a essência pela aparência) e de sua impotência político-social para a mobilização de massas e a combatividade quando de fato houver uma tentativa de Golpe de Estado ou de um Movimento Fascista;
3º) A política de frente antifascista serve aos interesses do governo Lula-Alckmin ao aumentar a coesão de classes sociais antagônicas em torno da defesa do governo contra o “inimigo maior e principal”, mas por isso mesmo essa unidade tende a cisões no médio prazo, ao passo que avançar a crise e a luta entre as classes;
4º) A frente antifascista, sendo uma política de conciliação de classes, por mais que fale em “ir as ruas”, “retomar o trabalho de base”, etc. ataca de forma eleitoreira e abstrata um espantalho político, sendo portanto incapaz de impulsionar uma efetiva mobilização de massas, representando muito mais um primeiro turno antecipado das eleições de 2026;
5º) Para as massas trabalhadoras o bolsonarismo não é nem pode ser hoje o “inimigo principal”, as massas populares já tem feito lutas, mas é da natureza governista e conciliatória de uma tal “unidade antifascista” negar as lutas e reivindicações concretas da classe trabalhadora, pois elas são uma ameaça em potencial muito maior ao atual Governo Lula do que ao Bolsonarismo.
Por mais que PSTU, PCB, UP, assim como grande parte dos pequenos grupos revolucionários afirmem a independência frente ao governo Lula, na prática seguem a agenda lulista de “unidade antifascista”. A palavra de ordem da unidade antifascista significa hoje nada mais que uma política governista para os movimentos populares fazerem frente com o governo e com a burguesia “progressista” contra a oposição de direita, escolhida como inimiga principal. É uma política que coloca o proletariado a reboque da política burguesa.
O pior do autoritarismo que há no Brasil é institucional e sistêmico, representado pela ação tirânica e extralegal das polícias, patrões, tribunais, igrejas, burocracias sindicais, etc., e é o PT e o novo bloco “progressista” que estão gerindo-o. Os grupos e gangues abertamente neonazistas são um elemento secundário da luta de classes. Por trás de toda a retórica “democrática” e “antifascista” do Lulismo está a gerencia da tirania da burguesia e do imperialismo. Assim, o atual governo burguês de Lula/Alckmin é o principal inimigo do povo. Destruir ou enfraquecer significativamente a força do Lulismo e sua política oportunista e burguesa nos movimentos populares é uma tarefa central para construir a verdadeira resistência e unidade da classe trabalhadora por suas reivindicações no próximo período.
Mas isso não significa esquecer a oposição burguesa reacionária, ainda centrada em Bolsonaro, e os perigos atuais e futuros que representam para as massas populares e os revolucionários. Dizer que hoje não temos uma ameaça de “golpe fascista” não significa que nunca haverá. As conjunturas mudam. Assim, deve ser feito também no próximo período um estudo sério sobre o avanço do autoritarismo e do estado exceção no Brasil, bem como sobre o fascismo e o militarismo, mas sem cair nas armadilhas e erros dos reformistas. Esse aprofundamento deve caminhar junto com a construção de medidas concretas de autodefesa e de luta contra o conservadorismo e reacionarismo na luta de classes. Os militantes e grupos antifascistas que sinceramente querem servir ao povo devem se atentar a essas questões.
1.4 – Como as organizações anarquistas nacionais se posicionaram nesses contextos
É importante pontuar como as principais organizações anarquistas se posicionaram nessas conjunturas. A CAB (ex-FAO) em todos esses momentos históricos decisivos se colocou ao lado do oportunismo de direita do PT/PCdoB. No momento de oposição ao governismo e criação da Conlutas se posicionou contra a ruptura com as Centrais e movimentos governistas, construindo a Intersindical, pois “não era o momento” de romper. Nas jornadas de junho de 2013 e no “Não Vai Ter Copa” de 2014 foi vacilante em apoiar a revolta e as táticas de autodefesa (acusando-os de “insurrecionalismo”!), cerrando fileiras com os partidos e movimentos governistas sob a bandeira da “unidade antifascista e da esquerda”. Por fim, durante o governo Bolsonaro e no processo eleitoral e pós-eleitoral seguiu reforçando a agenda política do Lulismo, se unificando com a esquerda para “combater a extrema direita nas ruas” como “inimigo principal”. É importante salientar que apesar do silêncio e da falta de análises públicas, típico dos ecletistas da CAB, em 2022 a mesma rachou em duas organizações “especifistas”.
Nos dois primeiros momentos analisados (atuação na Conlutas e em junho de 2013) a UNIPA foi uma verdadeira organização de vanguarda em relação à FOB e às lutas populares em que os bakuninistas estiveram envolvidos. Os bakuninistas atuavam como iniciadores-dirigentes, com uma responsabilidade e coordenação consciente dessas funções. Estavam corretos. Esse era o papel que se esperava da organização bakuninista, e foi o momento em que teve maior confiança e sintonia com os camaradas do “braço de massas” (RECC, GLP, ORC, ACS, FOB, etc.). Não era uma direção autoritária e sim natural, dirigia pela iniciativa, pela disputa democrática e pelo exemplo. Enfim, por que tinha uma linha. Os bakuninistas não tinham uma modéstia hipócrita de renunciar ao seu papel de vanguarda, nem assumiam uma postura tarefista e espontaneísta em sua militância. Portanto, em nosso balanço não nos enquadramos na crítica infantil e anti-partido que acusa a UNIPA de “dirigismo” na FOB. Foi exatamente nos últimos anos, quando passou a cumprir menos um papel de vanguarda, e que foi assolada por uma inoperância crônica, que as críticas ao seu “dirigismo” aumentaram.
Assim, a UNIPA nas duas primeiras conjunturas analisadas (de 2003 até 2017) teve uma posição completamente diferente da CAB e dos revisionistas libertários, mas essa política foi muito similar nesse último período. O que aproximou as posições da CAB das posições da UNIPA/FOB não foi um avanço político da primeira, os ecletistas mantêm uma coerência impressionante em seu oportunismo de direita, o fato novo foi a mudança de linha da UNIPA/FOB em direção ao ecletismo libertário, ao identitarismo e a linha paragovernista da “frente antifascista”[24].
Depois de sete meses da vitória eleitoral de Lula/Alckmin em outubro do ano passado, nenhuma orientação clara de ação por parte da UNIPA/FOB, nenhuma crítica “radical”, nenhuma análise de conjuntura séria do novo gestor do capitalismo brasileiro, haviam sido apresentadas até agora pra armar os trabalhadores pras lutas que virão! Quanto retrocesso! Essa omissão política é mais do que um deslize, é expressão de uma degeneração de linha política, uma degeneração inaceitável para os militantes classistas e revolucionários.
2 – Algumas questões candentes da política e da organização dos revolucionários
A partir dessa experiência histórica e das análises apresentadas nos pontos anteriores, ainda falta aprofundar em algumas questões de caráter político-organizativo. Obviamente os que falaremos não são os únicos assuntos importantes, muito menos pretende-se alcançar aqui uma solução definitiva e detalhada para os problemas complexos, a intenção é principalmente abrir um debate que muitos querem abafar, avançando em críticas e propostas.
Antes, algumas palavras introdutórias são necessárias.
Não existem condições no curto prazo pra uma contraofensiva da classe trabalhadora. O levante popular de 2013 se perdeu, relativamente, no que tange às suas grandes potencialidades. Demonstrou que pode ser necessário um, dois ou vários levantes (gerais e específicos) antes que haja efetivamente uma reorganização revolucionária e a constituição de uma nova consciência de classe do proletariado brasileiro. Quem afirma soluções fáceis via eleitoral ou revolucionária é um enganado ou um enganador.
Há um grande recuo do movimento sindical-popular em várias esferas: organizativa, política, ideológica. Seja no campo ou na cidade os movimentos tipicamente de “esquerda” são correias de transmissão da política eleitoral, depositando aí toda sua fé e esperança, sem qualquer autonomia coletiva real em relação as instituições burguesas. Ainda que façam lutas importantes, a estratégia socialista e revolucionária se perdeu. Até mesmo movimentos anteriormente mais independentes, como o indígena, tem sido alvo das ilusões propagadas pelos partidos reformistas.
A situação dos marxistas revolucionários, diante da capitulação histórica dos partidos e centrais hegemônicos, também não é melhor que a dos anarquistas revolucionários. O reconhecimento social como “comunista” ou “marxista” de organizações e lideranças francamente liberais-burgueses, e que hoje estão no governo ou nas burocracias sindicais, só pode ser um fator positivo aos olhos dos oportunistas. Em relação ao tamanho os grupos anarquistas e marxistas revolucionários não se diferem de forma significativa, existindo casos isolados de uma atuação maior em determinados setores, mas que não chegam a ser significativos na dinâmica da luta de classes. Portanto, o problema do isolamento e da necessidade de se vincular às massas é de todos os revolucionários socialistas, não apenas de uma ou outra organização. Hoje no Brasil não existe nenhuma organização que possa ser caracterizada (quantitativa e qualitativamente) como um partido revolucionário.
A partir de uma série de dados nós concluímos que o socialismo no Brasil não só está em crise como vive um período de imaturidade. Muitos socialistas se acham importantes por motivos absolutamente ridículos na luta de classes (curtidas em redes sociais, votos em eleições, algumas dezenas numa foto em protesto, artigos acadêmicos, cargos…), mas a verdade é que são muito fracos teoricamente, politicamente, pendulantes entre burocratismos e horizontalismos, sem peso real em setores estratégicos da classe trabalhadora, vulneráveis a propaganda burguesa (identitária, lulista, etc.), sem um projeto de revolução que ultrapasse os discursos estéreis e tenha real materialização em práticas junto as massas. As eleições de 2022, com grande parte das organizações e militantes aderindo de forma explícita ou velada a chapa Lula-Alckmin, pró-burguesa e pró-império, é um dos graves exemplos que escancaram essa crise e imaturidade. Outra é a adesão ao identitarismo/pós-modernismo.
É preciso parar de brincar de revolução. Como vimos, junho de 2013 poderia ter sido um salto nesse sentido. Mas superar essa crise vai ser mais difícil do que parece. Não sabemos quantos “junhos” vão ser necessários pra construir um movimento revolucionário de massas em nosso país, mas certamente nós precisamos enfrentar esse dilema o quanto antes: enquanto não houver uma mudança radical nas organizações de vanguarda e de massas, novos junhos, novas revoltas e insurgências ocorrerão e os revolucionários e o proletariado seguirão se debatendo em suas próprias contradições, se enganando, se desencontrando, sofrendo as reações burguesas que vêm logo depois das revoltas fracassadas. A luta irá continuar, essa não é a questão. A verdadeira questão é se o proletariado se fortalecerá suficientemente para vencer seus inimigos históricos (Estado e Capital), e se os socialistas revolucionários conseguirão cumprir seu papel nesse processo.
2.1 – A crise do anarquismo brasileiro e a tarefa de construção do partido
“São as massas populares que farão a revolução por si mesmas, dizem nossos adversários. Entendido. Mas eles devem saber que a massa revolucionária cultiva eternamente em seu seio uma minoria de iniciadores que precipitam e dirigem os acontecimentos. E temos o direito de afirmar que, numa verdadeira revolução social, os partidários do anarquismo proletário serão os únicos responsáveis por essa minoria.” (Pedro Archinov, 1927)
A sistematização e resgate do Bakuninismo com a fundação da UNIPA representaram um grande avanço no anarquismo. Entender a gênese da UNIPA há 20 anos atrás, nas disputas no interior do anarquismo e das lutas populares, é importante para compreender seu processo de construção, de crise e degeneração, e extrair as lições para seguirmos avançando. Não pretendemos jogar fora o bebê com a água suja. O pensamento-guia bakuninista segue vigente e é a melhor orientação teórico-ideológica para dirigir a luta socialista revolucionária até a vitória do proletariado. Como foi falado no jornal Causa do Povo nº67 (2013) a UNIPA é a “primeira forma organizada” do bakuninismo. Coube aos bakuninistas romperem com ela quando se perdeu. Cabe agora construir uma nova e superior etapa organizativa do anarquismo revolucionário.
Todos os erros e desvios apresentados pela UNIPA que já criticamos até aqui foram aprofundados por uma inoperância crônica, um desleixo e um espontaneísmo que tomou conta da organização e seus militantes. Na prática durante alguns anos a organização não existiu e não atuou como tal. Foi sendo “levada com a barriga” como diz o ditado. Isso se aprofundou com a pandemia, mas não foi causado por ela. Um desvio liquidacionista e ecletista hegemonizou a organização e destruiu o projeto, gerando as consequências citadas e várias rupturas em todo país. Certamente os que romperam também tem suas autocríticas a fazer, mas foi a única alternativa coerente que sobrou aos bakuninistas.
Mas os problemas não se restringem aos bakuninistas. A CAB, outra organização anarquista nacional (de orientação “especifista”), também sofreu nos últimos anos uma crise grave, com a formação de frações internas, que levou a um racha em 2022 formando duas organizações especifistas nacionais. Em termos de conteúdo, esse racha aparentemente não traz grandes avanços ao já conhecido ecletismo teórico e ao reformismo político que marcou a trajetória do FAO/CAB desde sempre.
O fato é que, além de uma crise do socialismo de forma geral, também existe uma crise no anarquismo brasileiro. Um dos seus traços principais é a maior dispersão de grupos e militantes, diferente das duas últimas décadas que foi de unificação em dois polos nacionais (bakuninismo e especifismo). Cronologicamente essa crise se inicia na “ressaca” de 2013/2014, com o impeachment de Dilma e, principalmente, com o surgimento do Bolsonarismo e o refortalecimento do Lulismo. A dificuldade de se posicionar corretamente frente as mudanças da conjuntura foi uma das raízes principais dessa crise, mas não foi uma exceção do anarquismo, atingiu quase todas as correntes.
Apesar das diferenças do que ocorreu na UNIPA e na CAB, existe um ponto em comum que deve acionar nosso sinal de alerta. Não sabemos detalhes da ruptura na CAB, mas sabemos que possui como um dos elementos uma denúncia interna com teor “identitário”. Também na UNIPA, denúncias e “apurações” internas com o mesmo teor fizeram parte das disputas que levaram a rachas. Ampliando um pouco mais, na FOB e em organizações marxistas o mesmo se verificou. É sintomático o que está acontecendo. Ao contrário de fortalecer as organizações, ou mesmo a luta antidiscriminatória, o modos operandi do identitarismo tem sido o enfraquecimento das organizações independentes, o que no fundo não beneficia a ninguém. O oportunismo de alguns em querer se adaptar e usar o identitarismo a seu favor custará caro a todos. Voltaremos a essa isso mais à frente.
Tendo como base a teoria bakuninista e a nossa experiência na UNIPA/FOB, a união dos anarquistas e revolucionários em uma Organização Política (Partido) é central para impulsionar e disputar a direção das lutas populares e das Organizações de Massas. A crise na UNIPA (partido) é a principal causa da crise na FOB (tendência). A linha de massas da UNIPA criou a FOB, não o contrário. Entender isso é fundamental. Não haverá resolução dos erros do passado se os anarquistas não resolverem o problema do partido. Dispensar a necessidade da organização anarquista é um erro liquidacionista, é cair no anarco-sindicalismo, como se a atuação voluntariosa dos militantes individualmente ou em pequenos grupos, por mais bem-intencionada, fosse suficiente. Por isso defendemos que na atual situação a prioridade é a reconstrução de uma Organização de tipo Partido Revolucionário (anarquista), tarefa essa que, como vimos, a UNIPA é incapaz de cumprir.
Não existirá uma linha correta que consiga resistir, se consolidar e cumprir com as tarefas exigidas pela atual conjuntura, que não seja através de uma estrutura de vanguarda, de quadros. A defesa da independência de classe exige uma luta programática e estratégica (pela direção) e uma luta organizativa por parte das organizações revolucionárias no interior do movimento sindical-popular. Não haverá reorganização da classe se não houver combate sistemático e organizado contra o reformismo e o sindicalismo de Estado. Esse combate deve ser feito pelos revolucionários se não quisermos sofrer, aliás, com a capitalização dele pelos neoconservadores.
Por fim, num momento de refluxo e difícil como o que estamos, é fundamental investir na teoria revolucionária e na formação de quadros. Mas uma coisa deve ficar claro, o elemento decisivo da disputa teórica não é a afirmação dessa ou daquela referência conceitual ou histórica em oposição a outras referências (como fazem os doutrinários), mas como um sistema teórico é capaz de explicar a realidade e criar novos pensamentos para explicar as novas realidades. Assim, o coroamento da teoria revolucionária é a análise mais ou menos correta que se faz da realidade brasileira e a linha de ação decorrente desta. Esse é um esforço permanente e essencial, mas foi abandonado pela UNIPA/FOB e a maioria das organizações. Ele deve ser retomado imediatamente. Como disse a FAU-Histórica: “não há política revolucionária sem teoria revolucionária”.
2.2 – A tática paralelista dos “sindicatos autônomos” da FOB e a reconstrução de uma linha classista e combativa no movimento de massas
No 2º ENOPES, em 2017, houve uma deliberação de que as atuais oposições sindicais, populares e estudantis da FOB (juntamente com comitês de mobilização abertos, etc.) seriam as bases para num médio prazo construir entidades representativas de novo tipo, sindicalistas revolucionárias, que rompessem com o sindicalismo oficial de Estado. Essa análise buscava responder a contradição entre o ciclo de ascensão das lutas que estávamos vivendo e um movimento de massas que ainda se mantinha refém das burocracias sindicais e estudantis. Era preciso apontar uma alternativa organizativa, não só para a vanguarda mas também para as massas. Essa deliberação previa etapas e momentos de balanço, para manter a estratégia correspondente com a realidade. No geral a ideia era correta, mas a sua aplicação demonstrou como uma proposta boa pode se transformar em algo ruim se aplicada da forma errada no momento errado. Quantos erros poderíamos ter evitado!
O que era a proposta dos “sindicatos autônomos”? A transformação de uma atuação de tipo-oposição no interior do movimento sindical e estudantil em entidades abertas, ou seja, avançar de uma organização de “tendência” (de militantes de base, de vanguarda) para uma entidade “representativa” (de filiação aberta, de massas). Essa linha de transição foi formulada no período 2014/2016. Mas a conjuntura pós-2017 não era favorável, as etapas prévias de construção não haviam sido alcançadas e os desvios político-organizativos cimentaram, todos juntos, um retrocesso e degeneração da proposta inicial, tornando os sindicatos autônomos em maior ou menor grau em um tipo de particular de grupo libertário eclético, nem coeso como uma corrente de militantes/quadros (como era a RECC, ORC, ACS, GLP, e a FOB) nem representativo como um sindicato ou movimento popular.
Basicamente, o que aconteceu pós-2017? Um grande refluxo nas lutas e movimentos. E isso é central. Por si só a ideia de lançar “sindicatos autônomos” deveria ter sido abortada. Mas não foi o que ocorreu. O primeiro “sindicato” da FOB foi lançado ainda em 2018 no Rio de Janeiro, depois outros foram lançados, sendo a maioria deles sob a denominação de Sindicato Geral Autônomo (SIGA). Discussões desgastantes e abstratas sobre estatuto afastaram militantes e fecharam nossos olhos (com um burocratismo “de baixa intensidade”) para o que acontecia a nossa volta e para as verdadeiras tarefas dos revolucionários e militantes de base numa conjuntura de refluxo.
A relativa aparência de “crescimento” e “êxito” da proposta da FOB desde 2017 contrasta com as rupturas e afastamentos de núcleos e militantes (em RJ, GO, DF, SC, MS, etc.), bem como a desestruturação do trabalho por ramos, a perda da qualidade dos militantes e da intervenção, não renovação de quadros, etc. O cúmulo foram muitos supostos “sindicatos autônomos” terem menos membros e menos qualidade do que tinham quando eram oposições sindicais e estudantis. Muitos SIGAs ou núcleos da FOB, que antes eram oposições com militantes combativos com uma grande capacidade de intervenção em suas bases e ramos, sucumbiram hoje a grupos de afinidades “libertários” e “antifascistas” altamente influenciados pelas modas de redes sociais da esquerda reformista e identitária. A “nova FOB”, com a direção de uma UNIPA inoperante e eclética, afrouxou a organicidade, os critérios de ingresso, a formação política, a disciplina militante, a análise de conjuntura, num momento de refluxo das lutas onde esses elementos são ainda mais importantes.
Uma mistura de burocratismo de “baixa intensidade” com voluntarismo, levou à crença de que a mudança da estrutura organizativa e da postura militante bastariam para garantir a massificação e representatividade tão desejadas. Junto desse erro organizativo veio outro teórico-ideológico. O triunfalismo e o ultrarrevolucionarismo dos discursos, que anunciavam “revoltas” e a “ascensão das lutas”, eram falsificações da realidade, puras declarações de desejos, que de certa forma justificavam o lançamento dos SIGAs. Esse método idealista de raciocinar, desconsiderando a realidade concreta, menosprezando a análise de conjuntura, levou até hoje a insistência nessa mudança de estrutura. Como já foi dito, a conjuntura desde 2017 até hoje foi de grande refluxo e o mais profundo êxito do Lulismo no controle e sabotagem do movimento de massas no Brasil. Mais do que nunca precisávamos de uma política de oposição no interior do movimento de massas.
E aqui chegamos numa das principais consequências desse desvio. O fato de criar sindicatos “fakes”, que não eram de fato organizações de massas ou representativas de nenhuma categoria de trabalhadores, não era em si o maior problema. Que exista um grupo de 5 a 10 pessoas que se auto-defina como sindicato, partido ou trupe, pode soar incoerente ou mesmo jocoso pra alguns, e com razão, mas não é um problema em si. Nós defendemos o princípio da livre associação dos trabalhadores. Mas anunciar um princípio não justifica tudo, devemos fazer o debate de tática e estratégia, ou seja, de linha de atuação diante da realidade concreta. Qual o nosso objetivo estratégico? A reorganização da classe trabalhadora. Quais as táticas e os métodos? Aqui é que mora o segredo, é um debate essencial, por que é concreto, não diz respeito às ideias gerais, mas como aplica-las diante de situações concretas, conjunturas específicas. E diante da situação concreta existiam duas opções: uma política de oposição à burocracia sindical-partidária e uma política de criação de entidades paralelas. A linha da UNIPA/FOB foi a segunda. Alguns dirão que uma não exclui a outra, concordamos, mas na dinâmica concreta estabelecida pela FOB/SIGAs não foi o que aconteceu.
Em vários comunicados e campanhas nacionais, em especial desde a pandemia, a FOB e os SIGAs abandonaram as análises e a política de oposição às burocracias reformistas e adotaram um estilo auto-proclamatório e propositivo, como se de fato dirigissem algum movimento de massas ou sindicato importante. Frente a um reformismo cada vez mais degenerado e contraditoriamente se fortalecendo pela polarização eleitoral, a política da FOB desarmava os militantes e organizações de base de uma linha concreta de oposição. Essa linha autoproclamatória não foi capaz de desmascarar e denunciar que a luta contra o “fascismo e o bolsonarismo” estava sendo dirigida pelo Lulismo e pelo PT, assim como foi todo o movimento “Fora Bolsonaro”, assim como a maioria das marchas e mobilizações que eles participam. No 8 de março, outro exemplo, enquanto priorizaram a “convocação” de uma greve de mulheres (ideia realmente muito boa, mas) que nunca conseguiu paralisar nenhum local de trabalho, nenhuma palavra de combate às direções pelegas e identitárias é realizada. Entre a intenção e a realidade existe um abismo, e a tarefa primária de combater as direções pelegas é trocada pela ilusão de ser um Sindicato ou uma Central, quando de fato não são. Em alguns casos, o puro idealismo cedeu lugar a um culturalismo mais palpável, meia dúzia de militantes homens lavando louça em casa e chamando de “greve doméstica”.
Assim, em termos de política organizativa, a FOB insiste em um modelo petrificado, principista, abertamente inspirado no modelo anarco-sindicalista europeu (acima de 10 pessoas funda-se um “sindicato”!), que não deu certo nem para as organizações europeias, e que no Brasil já tentou ser aplicado com os Sindivários pró-COB. No geral, infelizmente, o que a FOB está fazendo é tentar o mesmo caminho com mais eficiência, um “Sindivários 2.0”. Desde o 2º ENOPES, nem avançou de fato pra uma massificação, nem manteve uma política coerente de oposição às burocracias reformistas. O quadro geral é de retrocessos, com uma linha geral equivocada.[25]
Hoje vemos que isso é construir a casa pelo telhado. Nós já havíamos dito isso antes, em 2009, quando houve a fundação da ANEL. Naquele momento, com lutas estudantis massivas e combativas por todo país, o PSTU insistiu em construir uma “nova entidade representativa” de cima pra baixo, a RECC surgiu da crítica desse processo. A ANEL não resistiu às pressões da realidade e dos erros burocráticos de sua direção (PSTU). Vejamos o que os militantes estudantis combativos analisavam em 2009 na 1ª edição do “Avante!”, jornal nacional da RECC:
O objetivo do PSTU neste congresso [Congresso Nacional dos Estudantes] era fundar uma nova entidade, não importando o fato de não ter havido nenhuma discussão com a base dos estudantes. Seus militantes defendiam que apenas a criação desta entidade poderia garantir as lutas estudantis. (…) Irredutível, o PSTU reduziu as discussões nos GD’s sobre criar ou não a nova entidade.
(…) Assim, a Assembleia Nacional dos Estudantes – Livre (ANEL) é fundada antes mesmo de se discutir sua estrutura e sua base programática, provando que o importante mesmo era sua fundação e não seu conteúdo. Dessa forma, esta nova entidade é fundada sem representar os verdadeiros anseios dos estudantes.
(…) A RECC se organiza por entidades de base e oposições, através de uma lista de email nacional, um jornal impresso, um blog e reuniões das seções regionais. Sem o objetivo de ser uma “nova entidade estudantil”, ela é um instrumento nacional de reorganização entre os estudantes pobres e lutadores que assumem uma política claramente antigovernista. (AVANTE, nº1, setembro de 2009)
E nós afirmamos novamente essa análise alguns anos depois, por ocasião do 1º congresso da ANEL: “sabemos que a tarefa de reorganização será bem mais séria, complexa e abrangente” (Avante nº5, junho de 2011). É precisamente essa compreensão de um trabalho sério, complexo e abrangente que deve ser resgatada hoje, e que infelizmente não encontra mais terreno de disputa na UNIPA e na FOB. A linha hegemônica não quer encarar a realidade para não se livrar dos esquemas políticos e organizativos. Óbvio que isso é uma besteira, negar a realidade só pode conduzir ao erro e ao abandono de um trabalho “sério, complexo e abrangente”, só pode desarmar os revolucionários para as verdadeiras tarefas do momento. Os esquemas organizativos que os revolucionários adotam frente a realidade não podem se tornar dogmas tal como se tornou a fórmula do “sindicato autônomo”. Um conhecimento mínimo das experiências revolucionárias do século XX basta para contrapor esse dogmatismo.
No próximo período a energia para reconstruir uma organização anarquista revolucionária deve ser combinada com a coordenação e a retomada de uma linha de atuação a nível de massas. Não devemos reinventar a roda em relação aos métodos e propostas que deram certo, ou seja, o aspecto geral da linha de massas das oposições/tendências classistas e combativas e dos comitês de mobilização de base do período 2007-2016. Mas também deve haver espaço para críticas e novas propostas, uma certa flexibilidade tática, em especial nesse atual momento de “transição”. Uma nova proposta a ser incorporada é a construção de grupos de apoio/atuação nos setores estratégicos. Além disso, é preciso ter paciência e constância e não se deixar levar pelo tarefismo, debatendo coletivamente aonde e porque investir energia de acordo com o objetivo a alcançar. Essas iniciativas devem ser impulsionadas pelos militantes revolucionários para a formulação de uma “nova” Linha de Massas que dê continuidade a construção de uma Tendência Classista e Internacionalista.
2.3 – A luta ideológica contra o identitarismo e a renovação do “anarquismo de estilo de vida”
“Ideologia burguesa ou ideologia socialista. Não há meio termo (porque a humanidade não elaborou nenhuma “terceira” ideologia; ademais, em geral, na sociedade cortada pelas contradições de classe, não pode nunca existir uma ideologia à margem ou acima das classes). Por isso tudo o que seja rebaixar a ideologia socialista, tudo o que seja afastar-se dela, significa fortalecer a ideologia burguesa.” (Lênin, Que Fazer?)
Se há uns 20 anos atrás o pós-modernismo/identitarismo era uma ideologia minoritária, pregada em círculos acadêmicos elitizados, assim como negada ou ignorada por grande parte da esquerda tradicional (que associava a contracultura e o maio de 68 erroneamente ao “anarquismo”), hoje essa ideologia se tornou, integrada à tradição socialdemocrata, o pensamento hegemônico na esquerda brasileira e uma das faces da ideologia dominante das burguesias imperiais[26]. Não vamos fazer aqui um debate da história e teoria pós-moderna, nem nos ater as possíveis distinções entre este e o que se chama de identitarismo ou (multi)culturalismo, nosso foco são algumas consequências da infiltração dessa ideologia no anarquismo e nas organizações de esquerda de forma geral.
O combate ao identitarismo não surge de um conservadorismo da nossa parte, nem de qualquer capricho acadêmico. É um combate que diz respeito ao projeto socialista revolucionário que pretendemos construir. A anarquista ucraniana Hanna Perekhoda trouxe, no início da invasão russa ao seu país, uma reflexão importante sobre isso, sobre como estava a situação do anarquismo ucraniano e como as “ferramentas” construídos por ele eram incapazes de responder a realidade:
Esta guerra mostrou claramente quem tem que prioridades na vida e, mais importante ainda, quem tem grau de alienação. É tão engraçado observar os 99% daqueles que se consideram revolucionários aqui no ocidente porque vão a festas queer, comem apenas alimentos veganos de origem local e usam uma grafia inclusiva, enquanto empalidecem, coram e ficam verdes ao mero convite para sair a um comício antiguerra. Distribuir um folheto com tal convocação não é nada menos do que uma violação agressiva de seus limites pessoais. Os limites pessoais da preguiça, do consumismo, do egoísmo e do infantilismo. Para a grande maioria, todo esse anticapitalismo, feminismo, antirracismo, a luta pelos direitos LGBT é tudo uma tentativa desesperada de encontrar empresa e se encaixar na norma, sem nada a ver com ação política real ou pelo menos com valores. Certamente, já sabíamos de tudo isso antes, mas agora só nos dá vontade de vomitar sem parar. Os eternos adolescentes, incapazes de fazer qualquer coisa, exceto comprar roupas novas em lojas on-line, assistir a novelas e nutrir seus intermináveis traumas de infância. É tudo tão patético e nojento que nem vale a sua atenção, mas afinal de contas, estas são as mesmas pessoas que encontro todos os dias no corredor da universidade. Mas há outras. Para quem a luta política não é um conjunto de adesivos colados em um notebook. Eles são poucos, mas é por isso que são valiosos. Esses caras são a luz dos meus olhos. (Hanna Perekhoda, 2022)
A essa crítica lançada na Ucrânia, podemos acrescentar também a ruptura na organização francesa União Comunista Libertária (UCL) por causa da infiltração do identitarismo e do pós-modernismo[27]. E a lista seria longa. Assim, podemos ver que em escala mundial existe um embate cada vez maior entre um anarquismo ou socialismo integrado às novas ideologias imperiais-burguesas que chamamos de identitária/pós-moderna (e que requentam concepções pequeno-burguesas individualistas e culturalistas de muito antes), e um anarquismo ou socialismo revolucionário que buscam não só resistir a isso mas também desenvolver uma linha classista-revolucionária em seu programa, estratégia e métodos de ação junto às massas. Dada a proporção dessa luta, ela não é de menor importância, ela determina diversas dinâmicas e opções adotadas nos movimentos e organizações de “esquerda” hoje no mundo todo. Podemos dizer que o identitarismo/inclusão é a nova grande ideologia dessa esquerda reformista, integrada e pequeno-burguesa. É a nova cara do Reformismo no século XXI.
No Brasil, a hegemonia identitária na esquerda tem confluído para uma renovação do “anarquismo de estilo de vida” (como define Bookchin) ou do que chamamos de revisionismo, individualismo, culturalismo etiquetado de “libertário”. Mas a nova safra de revisionistas tem uma nova roupagem, que se relaciona a duas variáveis: por um lado há uma certa hegemonia (ainda que vaga) de um anarquismo classista e seus referenciais históricos e ideológicos (Plataformismo, Bakuninismo, Anarco-comunismo, etc.) como consequência das últimas duas décadas de crescimento da UNIPA e CAB a nível nacional; por outro lado a política revisionista de “estilo de vida”, que mistura elementos de culturalismo e pós-modernismo, se tornou não só uma infiltração burguesa no anarquismo mas em toda a esquerda brasileira. Essas duas variáveis juntas têm criado um caldeirão de ecletismo e oportunismo: “veganismo classista”, “teoria queer revolucionária”, etc. além da adoção acrítica de várias pautas e métodos identitários e culturalistas por militantes e organizações.
A adoção em maior ou menor grau do identitarismo, primeiramente pelo movimento estudantil reformista e policlassista das universidades públicas, e depois por grandes movimentos sociais de esquerda (como MST, UNE, CUT, APIB, etc., além obviamente de youtubers e outros imbecis) tem gerado a ideia de que é possível conciliar a luta classista com o identitarismo e o “anarquismo de estilo de vida”. Muitos desses movimentos têm se relegitimado para uma juventude universitária pequeno-burguesa a partir dessas linguagens e pautas identitárias. Para alguns anarquistas e marxistas (oriundos dessa juventude universitária) esses movimentos sociais teriam avançado por adotarem tais pautas, um suposto avanço em relação às ideias “tradicionais” e “economicistas” da esquerda do século passado.
Essa forma de entender a questão está errada tanto na forma quanto no conteúdo: 1º) Os movimentos de esquerda que adotam o identitarismo não o fazem como uma demanda de suas bases, de baixo para cima, mas como uma demanda das direções cada vez mais burocratizadas e/ou elitizadas, cada vez mais formada por setores universitários das grandes cidades; 2º) A ideologia identitária adotadas por esses movimentos surge em um contexto de maior integração destes movimentos às instituições do Estado e do mercado, substituindo na maioria das vezes as “lutas tradicionais” da classe trabalhadora por terra, salário, moradia, etc., através dos “métodos tradicionais” de greves, assembleias, ocupações, etc. e que entrariam em choque com o sistema. O MST, o maior movimento social do Brasil, é infelizmente um caso exemplar desses dois problemas.
Assim, a infiltração do identitarismo e do culturalismo nas organizações, ao contrário de ser um fator positivo, é mais um sintoma da crise e degeneração do socialismo no Brasil. Os anarquistas revolucionários do século XXI não podem se contentar em repetir as críticas de Bakunin, Makhno, Balius e Bookchin contra os individualistas, educacionistas, os “confusionistas do anarquismo”, os desvios pequeno-burgueses, o “anarquistas de estilo de vida” como se fossem fantasmas do passado! É preciso ter hoje a mesma coragem e coerência teórico-ideológica pra analisar e combater sem trégua os desvios pequeno-burgueses e identitários nas organizações socialistas e nos movimentos populares.
No momento de estruturação e expansão inicial da UNIPA/FOB, quando quase nenhuma organização fazia essa luta teórico-ideológica, nós fizemos em várias situações e de diferentes formas o combate ao pós-modernismo e ao (multi)culturalismo[28]. Essa era uma linha da UNIPA no início, defender a centralidade de classe, combater as infiltrações da ideologia burguesa e pequeno-burguesa. Num primeiro momento essa crítica se desenvolveu e aprofundou, até que com todos os desvios e rupturas nos últimos anos ela não só deixou de ser feita como a ideologia pós-moderna tem sido reproduzida (consciente ou inconscientemente) de várias formas pela UNIPA/FOB.
A imaturidade político-organizativa na UNIPA/FOB que presenciamos nos últimos anos estiveram atravessados por essa luta ideológica, e as opções escolhidas atendiam consciente ou inconscientemente à agenda pós-moderna e reformista (que no Brasil se tornou praticamente a mesma!). Não se conseguiu romper com ela, apresentando uma crítica radical e uma linha de massas alternativa, e a infiltração pós-moderna na UNIPA/FOB é cada vez maior e nada indica que irá diminuir. No DF, junto a outros fatores, ela destruiu a capacidade de intervenção real nas lutas, transformando o “sindicato” (SIGA-DF) ora em um grupo de afinidades (com assembleias e mais assembleias para debater futilidades, autoajuda e fofocas), ora em um estado de espírito ou uma página de rede social, retrocedendo radicalmente a quantidade mas principalmente a qualidade de quando atuávamos como “Oposição”.
A infiltração do identitarismo na UNIPA/FOB e nos seus núcleos locais teve pelo menos duas influências: 1º) tanto a UNIPA quanto a FOB, desde 2014, vinham sendo alvo de diversas calúnias e escrachos sob o manto da “luta contra opressões”, tanto aos seus militantes quanto às suas organizações, exatamente pela intransigência classista das organizações; 2º) a ideia de “massificação”, de “filiação aberta”, de “pluralismo” aprovadas no II ENOPES, num contexto de diversos desvios ideológicos na UNIPA e na FOB, tiveram como consequência introduzir pessoas e pautas identitárias anti-classistas, e as críticas que sempre fizemos a essas ideologias eram agora repelidas pelas direções da FOB/UNIPA como “intolerantes” ou “opressivas”.
Comecemos com o segundo ponto. A pseudo-massificação da FOB abriu as portas das organizações de forma indistinta principalmente a setores médios do funcionalismo público da educação, das universidades federais e da contracultura “libertária” e “antifa”, exatamente onde o pós-modernismo é a ideologia dominante. Porém, numa organização classista de “tendência” (como era a RECC antes) o processo de ingresso era criterioso, a função do militante era saber analisar e combater as direções pelegas e todas as suas ideias e práticas. A luta ideológica contra o educacionismo, o corporativismo, contra o pacifismo, contra identitarismo, etc. eram entendidas como lutas necessárias contra os vários aspectos da ideologia defendida pelas burocracias de acordo com as especificidades. E essa luta tinha que se dar no dia-a-dia, na prática. Não adianta dizer de forma genérica que é contra o identitarismo e reproduzir ele na prática.
Exemplo: Um movimento classista e combativo de estudantes ou de professores não pode surfar na onda do identitarismo burguês pra “massificar” nessas categorias. E foi esse desvio oportunista que aconteceu em maior ou menor grau com a FOB e com os SIGAs. É função dos militantes classistas e revolucionários combater o educacionismo onde há educacionismo, combater o identitarismo precisamente onde há identitarismo! Por isso que se deve também diferenciar os tipos de atuação (de vanguarda ou de massas) a depender da categorias e frações de classe, a depender da conjuntura. E isso não foi feito.
Voltando agora ao primeiro ponto. Hoje está provado que as expulsões movidas por denúncias ou calúnias não levaram a lugar algum. Para provar à oportunistas identitários ou a nós mesmos que éramos uma organização “que combate as opressões”, expulsou-se inúmeros quadros, levou-se indiretamente ao afastamento de vários outros. Nenhuma, absolutamente nenhuma, das expulsões ajudaram na luta contra as opressões, nem internamente nem na sociedade de forma geral, nem serviram como justiça restaurativa nem conseguiram apoiar as vítimas. Quase todos os envolvidos (acusados ou vítimas) seguem suas vidas normalmente com as sequelas desses traumas, mais ou menos envolvidos em lutas e em outras organizações, em geral ainda mantém relações pessoais com os militantes das antigas organizações. Não abandonaram a luta e suas convicções, mas não querem e nem conseguem mais atuar nas antigas organizações, alguns sequer conseguem militar mais. No fim, a maior perda com essa eliminação punitivista de militantes acusados ou caluniados como “opressores” foi das próprias organizações que já eram pequenas. E repito: nenhum saldo positivo para a luta antidiscriminatória pode-se tirar dessas expulsões.
Assim, essa questão de avançar na luta antidiscriminatória e, ao mesmo tempo, se livrar desses métodos e concepções erradas do pós-modernismo/identitarismo é fundamental para o próximo período. A UNIPA/FOB para evitar o desgaste cedeu às pressões do identitarismo, não faz mais o combate a ele e as suas manifestações concretas, para evitar escrachos se tornou ela própria identitária (e, claro, com ares de radicalismo!). A crítica hoje, quando é feita, se restringe aos discursos inofensivos e escorregadios de uma linguagem pseudo-acadêmica sobre pós-modernismo. A crítica ao identitarismo não está mais presente no combate político e ideológico, na agitação e propaganda, contra inimigos reais, como era feito antes quando o identitarismo se chocava com a linha classista e combativa. Hoje esse combate seria ainda mais necessário, especialmente no movimento estudantil e sindical, porque além de ser uma ideologia da classe dominante foi também assimilada pelas burocracias reformistas! Mas na prática a “autocrítica” da UNIPA/FOB é não fazer mais esse combate, é se render e se deixar intimidar por essa ideologia burguesa no momento que ela tem sido mais nefasta aos movimentos.
Num texto de 2009 da Oposição CCI ao DCE da UnB[29], onde os estudantes combativos denunciavam as posições pós-modernas do PSTU, PSOL e PT, o texto conclui da seguinte forma:
O caminho correto nem sempre é o caminho mais fácil, e a ação política com sinceridade e seriedade muitas vezes é atacada pelo oportunismo calunioso e o infantilismo pequeno-burguês. Porém, mais do que nunca, reafirmamos que, ao contrário da tática de se adaptar às condições políticas atrasadas que estão dadas, sustentar um programa classista, mesmo que em certos momentos se tenha que caminhar “contra a correnteza” (atuando como minoria), é o caminho correto a se seguir para avançar a consciência da base. (O Germinal, nº12, 2009)
Para desenvolver uma luta antidiscriminatória de orientação classista os militantes precisam fazer exatamente o que os reformistas e os burgueses identitários não fazem: impulsionar a luta econômica e social do proletariado marginal e do campesinato, combatendo com ação direta os pilares da superexploração; lutar por um programa reivindicativo de lutas antidiscriminatórias; aprender a falar com as massas, respeitar sua cultura, não impor uma linguagem ou estilo de vida pequeno-burguês; ter sensibilidade com as massas de oprimidos e seus reais sofrimentos e não com elites “oprimidas”; combater a manutenção do racismo através do corporativismo e peleguismo da aristocracia-burocracia sindical; desmascarar o oportunismo dos pelegos e da burguesia por trás das mudanças cosméticas de linguagem e símbolos. E para avançar nessas e muitas outras tarefas da luta é básico compreender que o identitarismo burguês não é “complementar” com a luta classista antidiscriminatória, são bases e meios antagônicos: uma tenta salvar o sistema a outra tenta destruí-lo.
2.4 – Quem são os sujeitos da revolução brasileira? A fragmentação da classe, os setores estratégicos e as tarefas dos revolucionários
“O anarquismo, apartado do movimento operário, entrou de definhar, de se consumir num criticismo estéril e impotente, de se dividir em pequenas capelas, com infiltrações de individualismo burguês ou de misticismo, divagações metafísicas e torneios intelectuais de diletantes e esnobes.” (Neno Vasco, Concepção Anarquista do Sindicalismo, 1923)
“O segredo da vitória é o povo.” (Carlos Marighella)
Muitas questões relativas a análise das classes e da estratégia revolucionária precisam ser novamente debatidas pelos militantes e organizações. A crise do socialismo e da classe trabalhadora não será resolvida sem isso. Existe um problema central: o afastamento das organizações tradicionais da “esquerda” (sejam marxistas, liberais ou anarquistas) das massas populares e o seu confinamento em certas categorias e camadas muito específicas de trabalhadores (do serviço público, sindicalizados, da educação, etc.). Esse problema tem várias consequências ideológicas, programáticas, organizativas, políticas, assim como está relacionado ao crescimento do conservadorismo de “direita” na classe trabalhadora.
Existem três aspectos do problema que iremos analisar: 1) o problema da aristocracia operária, da burocracia sindical e da pequena-burguesia, ou seja da camada social dirigente da esquerda brasileira; 2) o problema dos setores estratégicos na luta de classes e na revolução brasileira; 3) O problema do sujeito da revolução brasileira de forma geral e o papel dos revolucionários. Enfrentar essas questões é começar a resolvê-las. Parece óbvio mais muitos militantes e organizações não querem fazer esse debate.
Algumas das formas da esquerda de impedir esses debates foram: 1º) a negação da centralidade de classe, e portanto, a negação dos trabalhadores como o sujeito da revolução, substituída pela ideia pós-moderna das várias “opressões” (interseccionalidade), da “inclusão”, etc.; 2º) a crítica correta do economicismo marxista (sobre o operariado fabril como a priori) que se deturpou numa concepção idealista de “não-hierarquização” das lutas e setores; 3º) E por fim, como a maioria dos setores combativos e anarquistas também estão restritos a essas categorias do funcionalismo público, universidades, etc., o método “psicológico” de impedir o debate muitas vezes foi se defender como se fosse um julgamento moral, ou seja, assumindo que a crítica a “aristocracia operária” era um ataque a eles próprios (e não um debate político e estratégico), tergiversando o debate com a fórmula generalista “somos todos trabalhadores”.
Existe uma importante literatura já produzida pelos setores revolucionários de crítica da aristocracia operária. Bakunin foi um pioneiro nessa crítica, e muitos anarquistas e marxistas o seguiram, analisando o problema por diferentes vieses[30]. Os reformistas ao longo da história, por terem nessa aristocracia operária sua principal base social, sempre evitaram ou negaram a existência do problema, é o que em grande medida faz a esquerda brasileira. No contexto pós-revolução russa, Lênin expõe de forma clara o problema:
Uma das causas que mais dificultam o movimento operário revolucionário nos países capitalistas desenvolvidos é a de que, graças as possessões coloniais e aos superlucros do capital financeiro, etc. o capital desses países conseguiu criar uma aristocracia operária, relativamente grande e mais estável, um setor que abrange uma pequena minoria. Esta goza de melhores condições de trabalho e é a que está mais imbuída de um espírito de estreiteza gremial e de preconceitos pequeno-burgueses e imperialistas. é o verdadeiro “pilar” social da II Internacional, dos reformistas e “centristas” e atualmente é talvez o principal apoio social da burguesia. Nenhuma preparação do proletariado, nem mesmo preliminar, para o derrube da burguesia é possível sem uma luta imediata, sistemática, ampla e aberta contra esta camada que, sem dúvida – como a experiência já o demonstrou plenamente -, proporcionará um número razoável de elementos para a guarda branca burguesa depois da vitória do proletariado. Todos os partidos que aderiram a III Internacional devem pôr em prática as palavras de ordem: “Penetrar profundamente nas massas!”, “Vínculos mais estreitos com as massas!”, entendendo por massas todos os trabalhadores e explorados pelo capital, principalmente aqueles que se encontram menos organizados e educados, mais oprimidos e menos dispostos a organizar-se. (Vladimir Lênin, Teses sobre as tarefas fundamentais do II Congresso da Internacional Comunista, de 4 de junho de 1920)
A análise de Lênin é bem ampla, voltada para os “países capitalistas desenvolvidos”, além disso possui um contexto histórico específico. Ela expõe um aspecto geral do desenvolvimento e da dominação capitalista que se expandiu por várias geografias e épocas diferentes, ou seja, com suas particularidades, que é a estratificação da classe trabalhadora em um duplo mercado de trabalho (internacional e nacional). Tanto Bakunin como Lênin irão concordar que a camada superior do trabalho (a aristocracia operária) possui uma série de vínculos ideológicos e sociais com as classes dominantes, levando-a ao “aburguesamento”, a compromissos com a manutenção do sistema, sendo a principal base social dos partidos reformistas. Certamente o Brasil como um país semiperiférico possui especificidades, mas segue a tendência geral.
A atual camada social dirigente dos movimentos organizados da chamada “esquerda” brasileira, ou seja, do sindicalismo, do movimento estudantil e mesmo da maioria das organizações populares é formada por uma aristocracia de trabalhadores, uma burocracia sindical e partidária e uma pequena-burguesia estatista. Por sua posição social privilegiada em relação ao resto da ampla massa do proletariado, seja financeiramente, culturalmente ou politicamente, possui interesses diferentes ou mesmo antagônicos aos do restante da classe.
Essa camada aristocrática está concentrada nas altas carreiras do serviço público, em especial da educação pública federal, que além da alta média salarial também possui o prestígio da ciência oficial e dos títulos. A burocracia sindical, dos partidos e movimentos também é marcada pela sua dependência do Estado, através do imposto sindical, fundo eleitoral e fundo partidário, parcerias através de ONGs e instituições intermediárias, que garantem não só a manutenção dos burocratas sem precisarem trabalhar como garantem seus cursos, viagens, etc. Tanto uma como a outra categoria estão relacionadas aos novos gestores de fundos de pensão, empresários e quadros técnicos e políticos de instituições estatais e capitalistas.
Ainda que falem em “socialismo” nos dias de festa ou quando é conveniente, por todas as suas condições materiais de vida, por sua dependência do Estado e por seu adestramento mental pela ciência oficial e pela ideologia burguesa (de cidadania, de políticas públicas, de grandeza do Estado, de desenvolvimento, etc.), não possuem uma vontade real e consequente com a destruição do sistema do qual se beneficiam (ainda que fiquem com as migalhas da grande burguesia nacional e internacional). Não estão dispostos a enfrentar os riscos de um movimento revolucionário socialista que no seu processo (guerra civil, crises) e nos seus objetivos (coletivização da economia, fim dos privilégios, fim da divisão entre trabalho manual e intelectual, etc.) que ameaçam suas condições atuais de vida. A tradição socialdemocrata dessa camada foi cada vez mais cedendo lugar ao oportunismo, ao liberalismo com pinceladas assistenciais de natureza contrainsurgente. A assimilação do identitarismo por essa camada dirigente, com suas políticas lugar de fala, representatividade, etc. não alteraram em nada a sua característica aristocrática e burocrática.
Dessas camadas (aristocracia e burocracia), assim como da pequena burguesia, apenas uma pequena parte será possível incorporar na luta classista e revolucionária. Se é certo que todos os movimentos revolucionários dispuseram de elementos externos às massas trabalhadoras, e que foram importantes na luta, essas camadas não possuem esse potencial enquanto agrupamentos sociais. Ao contrário, possuem um potencial para nos momentos de crise apoiarem as classes dominantes contra a revolta das massas. Mais do que um problema futuro, hoje essa camada dirigente da esquerda é responsável pela desmobilização e traição das lutas, pelo autoritarismo com as bases de suas categorias, pela colaboração com os burgueses para o desenvolvimento capitalista e a retirada de direitos do povo. Hoje elas são uma das bases fundamentais do governo burguês de Lula/Alckmin.
As ideias dessa camada dirigente apodrecida devem ser combatidas sem trégua pelos revolucionários. A linha correta de ação é trabalhar para recolocar as massas profundas do povo como sujeitos ativos e fundamentais na luta de classes. Os bakuninistas defenderam há duas décadas atrás que os setores estratégicos da revolução brasileira são o proletariado marginal e o campesinato. Não iremos debater essa definição estratégica geral, concordamos com ela, mas acrescentaríamos outras frações de classe e também setores geográficos (tal como as cidades pequenas e médias de interior). Ela também não é impassível de crítica, aprofundamentos e atualizações. De qualquer forma não adianta anunciar algo em teoria e não definir os passos, as táticas, os detalhes de como organizar esses setores estratégicos, ou no pior dos casos reproduzir por oportunismo ou inatismo a linha geral da aristocracia/burocracia de esquerda. É esses alguns desvios que presenciamos na atuação da UNIPA/FOB no último período. Para nós, definir setores estratégicos, não decorre de uma crítica moral aos indivíduos, mas de uma análise da luta de classes e de uma linha estratégica, e tampouco implica um total abandono de linha em determinadas categorias da aristocracia operária.
Quando falamos em “ir ao povo”, implica estabelecer prioridades, hierarquizar aonde e quando despender as poucas energias dos setores revolucionários. É um trabalho militante árduo, sério, de formiguinha, mas deve ser planejado e executado conscientemente por uma organização/partido revolucionário. O objetivo é a organização e mobilização dos setores estratégicos e das massas trabalhadoras de forma geral. Alcançar esse objetivo é a pré-condição de outro ainda maior, que é a construção da Unidade Proletária. A unidade proletária, essencial para a revolução, não virá nem do corporativismo, que se afasta e desorganiza as massas, nem do messianismo, que tutela e as organiza de fora (ambas ideias não se contradizem, sendo defendidas pela camada dirigente da esquerda quando lhe convém).
Isso envolve necessariamente harmonizar a palavra de ordem “organização por local de trabalho, estudo e moradia”, essencialmente ampla, bem como correta para o trabalhador comum ou militante de base em geral, com uma palavra de ordem propriamente revolucionária “ir ao povo”, ou seja, “organizar e disputar a direção dos setores estratégicos da revolução brasileira”. Essa questão expõe o papel complementar, mas diferente, do movimento de massas e do partido revolucionário na luta de classes. Um militante ou trabalhador de base tem como tarefa prioritária a luta e organização em seu próprio local de trabalho, um militante revolucionário tem como tarefa central harmonizar as tarefas cotidianas e “de base” com as tarefas históricas e universais da luta de classes.
E aqui chegamos a um pouco crucial: Como essa palavra de ordem “basista” pode se transformar em oportunismo? Um grupo ou organização socialista, isolada em determinados setores da educação federal ou de cidades metropolitanas por exemplo, que se contenta em “atuar em sua base” e, como já se verificou em muitos momentos, se utiliza de camaradas do setor privado, produtivo ou de cidades do interior (onde seria “difícil” atuar) como forças de apoio desse núcleo elitizado e metropolitano, é um desvio oportunista. É óbvio que a linha de ação revolucionária correta é exatamente o inverso disso: utilizar a atuação nas categorias mais estáveis, improdutivas ou secundárias da classe trabalhadora como apoio para organizar e impulsionar a luta nos setores estratégicos.
Debatendo a questão das frações das classes exploradas na década de 1980, em específico sobre a ideia marxista de maior importância da classe operária em relação ao campesinato, José de Souza Martins (1981) disse:
Essa exclusão ideológica é tão profunda, tão radical, que alguns dos mais importantes acontecimentos políticos da história contemporânea do Brasil são camponeses e, não obstante, desconhecidos não só da imensa massa do povo, como também dos intelectuais (…). Na cabeça de muita gente fina da universidade, da Igreja, da intelectualidade esclarecida, estão ausentes esses acontecimentos. Eles não se somam à concepção de história já elaborada e cristalizada na cabeça dos intelectuais. A história brasileira, mesmo aquela cultivada por alguns setores de esquerda, é uma história urbana – uma história dos que mandam e, particularmente, uma história dos que participam do pacto político. (…) Enquanto uma greve na região industrial de São Paulo estimula dúzias de artigos, teses e livros sobre a classe operária e os rumos históricos do país, a Revolta do Formoso, que por mais de uma década, nos anos cinquenta e sessenta, implantou um território livre dominado por camponeses no centro do país, no Estado de Goiás, permanece como assunto esquecido e sem importância.
Hoje, ainda que os arautos da pós-modernidade digam o contrário, certamente estamos muito piores do que a esquerda tradicional dos anos 1980 que defendia a centralidade operária. Uma greve de professores ou um protesto estudantil nas IFES, um corte de bolsas da pós-graduação, são os últimos redutos de disputa para muitas correntes ditas socialistas ou de esquerda. Quando acontecem as greves operárias, ou dos trabalhadores do comércio, etc. a esquerda mantém um silêncio ou uma distância segura. Não participa e não aprende com elas. Essas greves não garantem os “likes” nem os “textões” idealistas sobre a educação, a saúde e a cultura serem as bases da sociedade (sic!), ou sobre a defesa dos serviços públicos e das políticas públicas (sic!). Assim como o campesinato já foi desqualificado pela teoria marxista, hoje é a ação do próprio proletariado em si que é desqualificada e ignorada pelas elites do pós-modernismo e do reformismo, em especial a ação do proletariado marginal.
Não é um mero acaso que a luta é mais difícil nos setores estratégicos. Fazer uma luta que ataca diretamente o lucro e o poder das classes dominantes é muito mais difícil e pode ter consequências muito mais sérias que ocupar uma reitoria ou fazer uma greve universitária por meses. Apesar de difícil, a mobilização e direção revolucionária em setores estratégicos terá resultados políticos muito superiores aos obtidos no último período em setores secundários. Colocar-se essa tarefa seriamente exigirá uma mudança radical na conduta dos militantes e suas organizações, e exigirá mudanças constantes ao passo que haja avanços ou recuos políticos e mudanças externas na conjuntura, de modo que todo sectarismo de “modelos” que prejudique a tarefa dos revolucionários na ação e organização das massas deve ser substituído pela constante crítica e autocrítica de nós e da realidade como um todo.
É um dado significativo que a atividade sindical e as reivindicações mais básicas nos setores estratégicos (setor privado, marginalizado, etc.) já tenham se tornado na prática uma atividade ilegal. Existe uma ditadura patronal/policial que passa longe da centralidade das prioridades da esquerda. Essa acomodação aos setores estáveis e elitizados da classe trabalhadora, bem como o desinteresse em organizar a luta do proletariado marginal e setores estratégicos demonstra, ao fim e ao cabo, uma acomodação ao sistema. É preciso fazer o oposto que os reformistas. O que é central para o Estado e Capital também o é negativamente para os revolucionários, não é uma questão de escolha.
Ir ao povo significa, portanto, uma ruptura com as ideias e a práticas militantes das camadas dirigentes da esquerda e também da pequena-burguesia identitária e doutrinária. Mesmo quando falam em “trabalho de base”, em “classe trabalhadora”, em “revolução”, esses setores tem uma visão muito idealista e elitista do que seja o povo brasileiro (que é a base de tudo). Como já vimos, o principal aspecto da crise da esquerda é o seu afastamento e incompreensão das massas. Mas não é um problema puramente teórico, de uma verdade perdida e que deve ser descoberta, são limitações que expressam interesses concretos. Compreender o que são e o que querem as massas populares implica negar toda um arcabouço de ideias e práticas (corporativistas, educacionistas, pacifistas, identitárias, reformistas, etc.) que constituem o próprio ser dessa aristocracia sindical e pequena-burguesia de esquerda. Hoje ela tem uma relação instrumental com as massas, pra vencer eleições sindicais e parlamentares por exemplo, mas o processo de burocratização do PT/CUT nos anos 1990 e 2000 a afastou profundamente delas. E é um caminho sem volta, pois toda mínima tentativa de “setores à esquerda” do PT de se religar às massas implica assumir compromissos que entrarão em choque com o projeto de poder estratégico do PT/PCdoB.
A saída para aqueles que não querem e não podem entender as massas é a repressão ou a educação, que na prática são diferentes formas de negá-las, para que se tornem aquilo que os doutrinários querem. Muitos que ainda se dizem revolucionários não entenderam que quem fará a revolução social no Brasil são as massas populares, com seus defeitos e virtudes, e em benefício da sua libertação coletiva como classe explorada. Toda ideia da pequena burguesia identitária e doutrinária de educar e civilizar o povo, de implantar ideias e discursos alheios, ideias que não nasceram no seio das massas trabalhadoras (nem daqui nem de outros lugares!) e que não correspondem às necessidades da sua luta coletiva contra o Estado e o Capital, devem ser identificadas e refutadas pelos militantes populares e revolucionários.
Assim, a mesma visão idealista que manifestam em relação às massas, também o fazem em relação ao processo revolucionário. A revolução social não é um conto de fadas politicamente correto, formulado em disputas acadêmicas e redes sociais, onde todos os supostos problemas de sexualidade, linguagem, subjetividade, estilos musicais, dieta alimentar, religiosidade das massas populares serão solucionados (ou “problematizados” ou “desconstruídos”, pra usar a linguagem liberal da moda) previamente de acordo com critérios desses senhores. A revolução é uma guerra social que destrói pela força as estruturas do poder burguês e constrói um novo poder popular-proletário, e isso exigirá um grande sacrifício e unidade do nosso povo.
Quanto mais a esquerda exige que o povo seja o que ela quer, mais o povo se afasta desses charlatões e suas falácias. Mas um dos problemas está exatamente aí: pela relatividade das ideias e organizações das massas (que não são um bloco monolítico e unitário) sempre existem setores e indivíduos proletários que aderem a propaganda dos doutrinários. Bakunin já denunciava o papel nefasto do socialismo burguês no século XIX, o que ocorre hoje é similar. E obviamente a associação das ideias da esquerda identitária e eleitoreira com o Socialismo e o Anarquismo leva as massas a renegar também estas últimas[31].
A vida e a experiência coletivas das massas é a única fonte de sustentação de uma revolução social verdadeira. Aquelas forças políticas que mais entenderem e se adequarem às condições impostas para conquistar a vitória das massas contra seus inimigos, serão as forças políticas que mais terão capacidade de iniciar e dirigir os acontecimentos. São as forças que ganharão a confiança do povo. Assim foi em todas as revoluções. Não é o povo que serve aos revolucionários, são os revolucionários que servem ao povo. No fim, os charlatões e tagarelas doutrinários (que sempre existiram em todas as revoluções), e que hoje são hegemônicos na esquerda tanto marxista quanto anarquista no Brasil, serão atropelados pelas massas populares em luta. O barulho que fazem agora em tempos de refluxo será o silêncio e a fuga de amanhã quando as massas tomarem a ofensiva e de fato tiverem a voz e o poder.
Quem acha que tudo é uma “disputa de narrativa”, e que, se o povo pensa certas coisas ou tem tais valores, qualquer um pode modificar isso com propaganda/educação (ou repressão) em prol da sua “narrativa correta”, tem uma visão totalmente errada sobre o papel das vanguardas e da mudança de consciência das massas. Não existe uma disputa de ideias no vazio. A disputa de ideias corresponde às necessidades materiais das classes em luta. A própria ideia revolucionária, ou é uma necessidade das massas e das suas condições materiais de existência ou ela não é nada[32]. Essas ideias descoladas das massas, por mais interessantes e por mais “likes” que tenham, estão fadadas a ir e vir como as ondas do mar, ou melhor, como as modas de estação. Assim são as várias modas de estação da esquerda acadêmica e pequeno-burguesa: o feminismo radical, o afrocentrismo, o queer, o veganismo, o decolonial, a linguagem inclusiva e suas mil variantes, etc… E ninguém entende porque elas vêm e vão. A verdade é que elas são rejeitadas pela vida real. E se não quisermos ser rejeitados, devemos entender com a maior fidelidade as condições de vida das massas. O papel da vanguarda é precisamente esse, e quanto estiver fundida ao povo, quando tiver ido ao povo, tiver sua confiança, quando for povo, a vanguarda poderá cumprir seu papel e ser digna desse nome.
2.5 – Os revolucionários e a questão nacional brasileira
Não se pode fazer mais nada com o fato de que a identidade nacional brasileira tenha sido uma imposição. A identidade indígena que unificou os vários povos que aqui viviam também foi uma imposição colonial, mas se tornou depois um instrumento de união para a resistência. Assim como a condição proletária é igualmente imposta pelas relações de exploração do capital, mas assumida pelas massas pode se transformar numa identidade de classe revolucionária.
A identidade nacional brasileira é um fato material, que numa dialética contínua entre dominação-resistência uniu esses povos ao longo da história, não só pela mão do Estado mas pelas suas próprias mãos, e pode ser sem dúvida uma importante base de unidade para uma luta de libertação nacional e social.
Não existem separatismos nacionais aqui, na verdade boa parte dos assim chamados “separatismos” na história do Brasil nunca tiveram motivos nacionais propriamente, e sim sociais, econômicas ou políticas.
Apoiemos a luta heróica dos Mapuche, Curdos, Bascos, defendamos o direito de qualquer povo-nação que lute pela sua autodeterminação em qualquer canto do mundo, mas não olhemos nosso país com um sectarismo de cartilhas estrangeiras. Devemos entender o bakuninismo enquanto um pensamento revolucionário vivo, que serve para entender e transformar a realidade aqui e agora.
Assim, assumir a revolução brasileira é, antes de tudo, assumir com maturidade e firmeza a tarefa de entender e libertar o nosso povo, com base no que ele é e não no que ele deveria ser de acordo com os desejos e preconceitos de uma esquerda aburguesada e liberal. A missão revolucionária é unir o povo brasileiro e não destruí-lo ou, pior, “desconstruir-lo”. Insistir nesse erro básico de abordagem da questão nacional só nos levará a erros, isolamento e derrota.
E para debelar possíveis “principismos libertarios” juvenis, não esqueçamos da base nacional e patriótica da luta zapatista e curda, ou dos guerrilheiros brasileiros que como Marighella se definiram como patriotas. Ou do MST e muitos outros movimentos populares. Não sejamos eternos patriotas de outras pátrias, de movimentos de libertação nacional alheios, e esqueçamos desta nação debaixo do nosso nariz e que o nosso pé pisa!
Obviamente não estamos falando de defesa do Estado, assim como os zapatistas e curdos também não. Não igualemos nação e Estado. As diversidades étnico-culturais existentes no Brasil não impediram historicamente a formação de uma identidade nacional própria, enquanto povo-nação, não raras vezes em conflito com o Estado e as classes dominantes. Aplicado ao contexto atual, a concepção bakuninista combate tanto o sonho subimperialista do Lulismo quanto a subserviência neocolonial do Bolsonarismo, cinicamente travestida de “patriota”. Nenhum dos dois rompe com a dependência, portanto, não realizam a libertação nacional que tanto pregam.[33]
Também não estamos falando em negar o internacionalismo, ao contrário, queremos construir bases sólidas, materiais, de baixo para cima, e não de cima para baixo como uma ideia internacionalista abstrata e absoluta de certas correntes comunistas. A questão nacional brasileira para nós é uma luta contra o sistema imperialista e capitalista como um todo, inclusive um enfrentamento das massas trabalhadoras do Brasil contra o “seu” Estado e as classes dominantes que o exploram e oprimem.
Por que retomar esse debate sobre nacionalidade e povo brasileiro? Por que uma das consequências do afastamento do socialismo em relação ao povo têm sido a adoção de uma política idealista e pós-moderna (por vezes pintada de decolonial) de “desconstrução” do povo brasileiro, de atacar certos símbolos nacionais, queimar bandeiras, mudar linguagens e símbolos, etc. sem perceberem que tal “desconstrução” não vêm de uma necessidade concreta das massas, são na verdade frutos do retrocesso ideológico como consequência do afastamento em relação ao povo, são quase uma cópia da lógica da contracultura dos anos 80/90 (que ao menos assumia esse afastamento do povo de forma aberta!).
O mesmo que fazem com a questão nacional, fazem com a religiosa, partem de problemas reais, mas analisam de forma errada (pós-moderna ou conservadora) e terminam por chegar a resultados miseráveis para a classe trabalhadora. Toda defesa de uma nação é uma política fascista? Toda afirmação religiosa é fundamentalismo? Óbvio que não. A questão religiosa, assim como a questão nacional (no sentido popular que o anarquismo dá a essas questões) são partes importantes da vida do povo, devem ser entendidas de forma profunda para se formular um verdadeiro programa revolucionário, classista e internacionalista.
3 – Um convite à reunificação das forças social-revolucionárias
“Sempre será possível – com vontade e firmeza – superar os contratempos, por mais grave que eles sejam. Os reveses que podemos sofrer serão convertidos em experiência, ponto de partida, para avançar em organização e eficácia. Esse é o caminho que temos que percorrer. É sempre pouco o empenho que podemos dedicar. Prioridade então, para fortalecer os instrumentos que sirvam de respaldo prático e ideológico ao companheiro que atua no sindicato, ao militante comunitário, ao estudante que combate. Durar, porque a luta é prolongada. Atuar, porque a ação é a melhor escola. Converter a rebeldia espontânea em trabalho organizado, essa é a linha justa.” (Cartas da FAU, 1968)
Camaradas, diante de tudo o que foi falado, e apesar de toda a dificuldade que temos visto em muitos camaradas depois de décadas se dedicando a organizações que não só se perderam mas em muitos casos os traíram, o maior combustível para o convite que aqui fazemos é a incansável determinação de tantos em seguir lutando, buscando alternativas, criando novos caminhos na unha e na raça, enfim, que seguem acreditando na revolução social e na luta classista. Se hoje fazemos uma análise do refluxo das lutas e da crise do socialismo, por outro lado sabemos que a realidade está em transformação. Não é o fim da história. Há o que fazer, e faremos. Mas precisamos aprender com os erros.
Convidamos os militantes e trabalhadores a se juntarem a nós para a reconstrução de uma Organização/Partido socialista revolucionário (de orientação bakuninista), que unifique os esforços já existentes em várias categorias e partes do país: frente de massas, teoria, propaganda, etc. melhorando, apoiando e orientando coletivamente essas iniciativas. Que desenvolva no próximo período: 1) uma rearticulação de velhos e novos camaradas para essa nova etapa de organização; 2) um trabalho de formação teórico e político que busque contribuir com as principais tarefas da luta revolucionária; 3) um trabalho de agitação, propaganda e organização junto às massas populares e aos movimentos sociais.
Vai ser difícil reconstruir uma outra referência política e organizativa, ainda que modesta? Vai. O momento de ruptura é difícil. Grande parte das ideias, das pessoas e mesmo dos materiais das velhas organizações foram construídos ao longo de décadas pelos camaradas que saíram. A maioria dos militantes fundadores dos principais núcleos da UNIPA/FOB romperam nos últimos anos. Além disso, esses conflitos internos na maioria das vezes não vieram a público, então a “referência” sobre bakuninismo, sindicalismo revolucionário, etc. continuou nas velhas organizações, e muitos contatos, apoiadores ou novos membros tem uma dificuldade natural em tomar posição. Assim, um certo período de confusão deve perdurar até que as posições fiquem claramente determinadas.
Não temos varinha mágica pra dizer como acontecerá. Colocar o pé no chão com frieza e humildade para reconstruir o trabalho militante será muito importante. Sabemos que existem várias avaliações similares à nossa. Também não estamos sozinhos nem parados por aqui. Isso nos dá esperança e aumenta a nossa responsabilidade, apesar de todas as dificuldades que temos pela frente. Mas também temos que ter paciência e determinação para o diálogo, mesmo quando ele for incômodo ou difícil, pois também existem divergências e rusgas entre os grupos e militantes dispersos por todo o país. Na nossa avaliação os erros do passado são menores que os esforços que podemos fazer para a reorganização do socialismo revolucionário no Brasil.
Atrás de nós, empurrando cada trabalhador e militante consciente, há uma experiência histórica riquíssima de lutas proletárias, revolucionárias e socialistas, esforços práticos e intelectuais gigantescos para a libertação social. Os anarquistas não podem ignorar esse acúmulo sem cair num dogmatismo de seita, do clubinho libertário. Como parte desse esforço anti-sectário, os bakuninistas devem lutar para retirar o anarquismo da característica de “identidade” (extravagante e culturalista da pequena-burguesia). O militante bakuninista se importa nada com a “identidade anarquista ou libertária” e tudo com a prática concreta e as questões programáticas, estratégicas, táticas e teóricas que a envolvem, pois são os aspectos que de fato importam e que distinguem o anarquismo como uma corrente socialista revolucionária eficaz e relevante para a libertação das massas.
Analisamos o passado com o intuito de construir o futuro. Recai sobre a nossa geração a responsabilidade de resistir a todos os desvios e crises que se abate hoje no anarquismo e no movimento popular. Nossa maldição é que sempre que chegamos ao fundo do poço surge um novo oportunista cavando e piorando ainda mais nossa situação, ou quando estamos saindo do poço há quem proponha um “atalho”, alguma “novidade”, pra voltarmos pra lama… Já chega! O futuro da nossa corrente depende desses homens e mulheres que não se renderam e não capitularam. Esses são os guardiões do aprendizado passado, são os únicos que se interessam realmente nele. Os oportunistas querem que continuemos no fundo poço, criam mil mentiras pra esconder a realidade. Talvez tenhamos que ressurgir da lama, é verdade, será difícil, mas não iremos mais esquecer as duras lições do passado e elas nos guiarão pra vitória.
Ir ao Povo! Organizar as forças da Revolução!
Morte ao Reformismo e ao Capitalismo!
Bakunin vive e vencerá!
Notas:
[1] Características que os bakuninistas já analisavam desde o primeiro governo Lula: “O reformismo do PT é a expressão brasileira de um fenômeno latino-americano e mundial, o da aliança das burocracias dos movimentos sindical e popular com o imperialismo, transformando-se os partidos reformistas agora abertamente em partidos contrarrevolucionários.” (Comunicado de 2006 da UNIPA, “As Reformas do Governo Lula e as Tarefas do Proletariado”)
[2] Segundo matéria publicada no Causa do Povo nº 67: “A gênese do bakuninismo remonta à experiência de organização dos anarquistas que começa nos anos 1990. Podemos dizer que esse processo tem três condições que o alimentaram: 1ª) a cisão nos grupos anarquistas de natureza contracultural ou editorial pré-existentes; 2ª) a influência internacional da FAU (Federação Anarquista Uruguaia), que impulsiona a Construção Anarquista Brasileira (documento que convocava a construção de organizações anarquistas pelo Brasil); 3ª) a experiência de militantes do movimento estudantil e de moradia que vão se aproximar desse campo, buscando conciliar a crítica do Estado e do oportunismo com uma linha política.”
[3] Dois comunicados da UNIPA importantes sobre esse período é o nº1 de julho de 2004: “A Crise do Governismo e a Estratégia da Ação Direta: Análise de conjuntura e posicionamento político” e o nº6 de março de 2005: “As Reformas do Governo Lula e as Tarefas do Proletariado: Contribuição ao debate sobre a Coordenação Nacional das Lutas”.
[4] “CONSTRUIR O MOVIMENTO ESTUDANTIL CLASSISTA E COMBATIVO”, por Ação Direta Estudantil (ADE-RJ) e Oposição Combativa Classista e Independente (CCI) ao DCE da UnB. 11 a 14 de junho de 2009, Rio de Janeiro-RJ.
[5] “EM DEFESA DE UMA CENTRAL DE CLASSE”, por Diretores e Militantes de Base de SINDSCOPE, OPOSIÇÃO PETROLEIRA, SEPE-RJ, SINTTEL-RJ, ANDES; e por Oposição Classista e Combativa ao DCE-UFC (CE) e Oposição Combativa Classista e Independente ao DCE-UnB (DF). 3 a 5 de junho de 2010, Santos (SP).
[6] As vacilações políticas do PSTU e do PSOL vai fazer a UNIPA caracterizá-los de “paragovernistas”, que significava que esses partidos e movimentos se autodeclaravam formalmente na oposição ao governo do PT e ao governismo no movimento popular, mas por uma série de práticas “faziam o jogo” e reforçavam o governismo, se colocando como um entrave para a reorganização da classe trabalhadora.
[7] O caso mais emblemático foi o liderado em 2016 por Valério Arcary, ex-dirigente nacional do PSTU e intelectual trotskysta, que junto à 739 ex-militantes do PSTU lançaram o manifesto “é preciso arrancar alegria ao futuro” pedindo filiação ao PSOL. Atualmente se tornaram a corrente “Resistência”, uma ala à direita no PSOL, marcada por uma política lulista e identitária.
[8] Vários desses aspectos foram analisados nesse período pré-junho de 2013 pela UNIPA através da campanha “Uma década de ilusão”.
[9] Quanta novidade! Todos os processos históricos são heterogêneos e contraditórios, possuem avanço e recuos, disputas entre classes e organizações. Esse centrismo é bem característico dos “intelectuais” da esquerda pequeno-burguesa.
[10] Para ver os documentos produzidos pela UNIPA no calor da revolta de 2013, indicamos: “VIVA AS JORNADAS DE JUNHO DE 2013 | Documentos políticos e teóricos”. Para uma análise teórica posterior ver o artigo “O Levante dos Marginalizados: análise sociológica dos protestos e manifestações populares no Brasil” publicado na revista Via Combativa nº3. Ver também o comunicado da RECC: “Um novo ciclo da luta de classes no Brasil: as Jornadas de Junho como explosão da contenção social e as tarefas da auto-organização popular” e, por fim, o comunicado da UNIPA: “Outros junhos virão: O domínio da pequena burguesia, racismo-machismo e a luta de classes no Brasil pós-2013”.
[11] Temos que reconhecer a coerência de organizações e militantes maoístas, com os quais desenvolvemos a unidade tática na luta e nas barricadas, ainda que com uma série de diferenças de análises e concepções. Posteriormente, por erros e dogmatismos, vários conflitos minaram as possibilidades de unidade, enfraquecendo um “campo classista combativo” que se aliava com frequência no movimento estudantil desde 2008 até mais ou menos 2014.
[12] Cabe algumas palavras sobre o PCO e sobre a tese do “golpismo” defendida hoje por organizações como a FOB. Durante os primeiros governos do PT o PCO se marginalizou em relação ao movimento de ruptura com o governismo, defendendo a CUT e a UNE. Por outro lado, ainda que vacilante o PCO mantinha uma crítica às direções sindicais do PT e PCdoB e aos governos petistas. Ficou conhecido pelo termo “bando dos quatro” para criticar o PT, PCdoB, PSTU e PSOL. Mas essa posição muda substancialmente em 2013/2014 quando o partido assume a tese da ameaça do “golpe” e do “fascismo”. De lá pra cá a linha política do PCO consistiu basicamente em “radicalizar” a agenda política do PT e do Lulismo, atuando como uma corrente externa do PT, mais petista que o próprio PT. A criação dos Comitês contra o golpe, a criação do jornal antifascista “O Homem Livre”, cenas de brigas de militantes com membros do MBL, etc. foram algumas das consequências dessa linha que consistiu desde o início em esconder em uma aparência “radical” uma política cada vez mais pelega de apoio ao Lulismo. Infelizmente, hoje a política da FOB e outras organizações autonomistas e anarquistas que aderiram tardiamente a tese do “golpismo fascista” é muito similar as do PCO. Um exemplo foi a intervenção da RECC (filiada à FOB) na Bienal da UNE 2023: ao invés de combater os pelegos da UJS/PCdoB, PT e apêndices (que atuam como gangues burocráticas controlando a direção da UNE e atuam como correia de transmissão do governo), foram à Bienal tomar uma bandeira de meia dúzia de almofadinhas liberais da UJL (União Juventude e Liberdade), e chamaram isso de “ação direta antifascista”. A RECC/FOB tentam se diferenciar do PCO por um identitarismo radicalizado, ironicamente se valendo de cartas de denúncias e escrachos (os métodos típicos dos pós-modernos) contra os “fascistas” da UJL, NR e do PCO. Beira o absurdo! Qual proximidade ideológica de fato existe entre um grupo liberal, um nacionalista-conservador e outro trotskista? Enfim, não tendo uma “ameaça fascista” real tratam de criar um fantasma, usando e abusando das redes sociais e de termos da moda. A capacidade de produção e atualização teórica (inclusive de críticas necessárias ao liberalismo, ao nacionalismo-conservador ou ao marxismo) é substituída pela miséria das acusações de “fascista”. Seria cômico se não fosse trágico.
[13] “Anarquismo e Ativismo, em geral e particularmente no Brasil: combater as influências burguesas nas lutas e resistências pós-J13”, Comunicado nº 56 da UNIPA, outubro de 2017.
[14] Um artigo escrito por um camarada que já rompeu com a UNIPA/FOB, mas que foi publicado apenas em 2021: “Feminismo imperial ou mutualidade feminina: A diversidade como arma de dominação e a necessária luta mutualista das mulheres do povo”(UNIPA, Via Combativa nº 4).
[15] Mas justiça seja feita, a estratégia inicial de massificação previa uma série de etapas e avaliações que não foram feitas. Os erros de direção nacional e local, a inoperância e desvios na UNIPA atropelaram tudo, especialmente com o lançamento do sindicato geral autônomo do Rio de Janeiro ainda em 2018.
[16] No comunicado “FORA BOLSONARO! PODER PARA O POVO” de novembro de 2019, por exemplo, podemos ver um exemplo nítido do triunfalismo idealista que tomou conta da FOB. Infelizmente essa característica de desconsideração da realidade foi a marca de lá pra cá. Tinha sua função de ser: dar ares de possibilidade para os vãos (ainda que sinceros) esforços de “massificação”. Outros tantos comunicados nacionais e locais incorreram no mesmo erro.
[17] Nas eleições municipais de 2020, em pleno governo “fascista” de Bolsonaro (na época filiado ao PSL) e em plena pandemia, o PT de Lula e o PSL de Bolsonaro fizeram coligações em 136 municípios! Que golpe fascista diferente esse, não é mesmo?!
[18] Outros agrupamentos e intelectuais socialistas também se opuseram a tese do “golpe” com maior ou menor consistência, como Nildo Ouriques (do grupo Revolução Brasileira) e a organização Transição Socialista, por exemplo. Internamente à UNIPA/FOB também tivemos camaradas que criticaram a tese do “golpe” em 2016.
[19] “O chamado Movimento Fora Arruda era dirigido pelos governistas da CUT, UNE, PCdoB e PT, e foi capitalizado por estes para seu próprio projeto eleitoreiro. Após os escândalos, diversos partidos da base de Arruda (tal como PMDB, PSB, PDT) passaram de “mala e cuia” para a chapa do PT. (…) o PT não passou de um fantoche para estabilizar a crise institucional, e as classes dominantes se utilizaram da capacidade petista de cooptação das burocracias sindicais e estudantis para seguir com tranquilidade sua política neoliberal. As classes dominantes locais souberam manejar a situação para se manter no poder.” (UNIPA, Eleições no Distrito Federal, 25/10/2014)
[20] De 2010 à 2017 houveram 29 ações de GLO no Brasil, sendo a maioria no período de 2013/2014, ou seja, o uso das Forças Armadas para a repressão à luta popular não era nenhuma novidade ou exclusividade do governo “golpista” de Temer.
[21] Como se os trabalhadores devessem “reconhecer” ou “legitimar” um carrasco democrático!
[22] Uma das organizações socialistas que, ao seu modo, defendeu uma linha de massas baseada nas reivindicações e lutas populares e não no “Fora Bolsonaro” foi o Partido Operário Revolucionário (POR).
[23] Ver os textos: “Estamos à beira de um golpe? Notas sobre a luta de classes no contexto pós-eleitoral” (04/11/2022, por Antonio Galego) e “Os revolucionários devem ir para as ruas ‘defender a democracia contra o golpismo’?” (10/01/2023, por Antonio Galego e Jiren D.).
[24] Alguns exemplos demonstram isso. A editora Terra Sem Amos, uma editora associada à linha da FOB, tem sido um dos palcos para os desvios analisados. No mês de novembro de 2022, logo após a vitória de Lula, a editora lança o edital para a sua revista com o tema “Ideias para desbolsonarizar o Brasil” reforçando a política reformista. Em fevereiro de 2023, não por coincidência, a Executiva Nacional do PSOL aprova a política de “lutar para desbolsonarizar o Brasil”. Por outro lado, o sindicato ADCEFET-RJ, também dirigido pela linha da FOB, diante do ato bolsonarista de 8 de janeiro irá defender o fortalecimento de “frentes e ações antifascistas” já que “o principal a ser combatido é a extrema direita com suas reivindicações”. A mesma linha é exposta em comunicado nacional e nas redes sociais da FOB após o 8 de janeiro, convocando à “luta radical” contra o “golpismo fascista”.
[25] Certamente alguns núcleos e iniciativas da FOB (assim como em várias outras organizações) dão bons exemplos de luta. Mas são exemplos específicos que infelizmente não mudam em nada a crítica que fazemos, pois são exemplos que ao contrário de possuir um potencial de alterar a direção da FOB, o efeito tem sido usá-los como “exemplos de êxito” da direção equivocada atual. E não existe nenhuma outra organização/partido que dispute a direção da FOB e possa fazer oposição à direção hegemônica da UNIPA.
[26] Para uma leitura da história e teoria do pós-modernismo ver “A condição pós-moderna” (David Harvey), “Pós-modernismo, novas roupagens para o capitalismo” (Plataforma Comunista Libertária) e “Feminismo Imperial ou Mutualidade Feminina” (Revista Via Combativa).
[27] Ver nota no jornal O Amigo do Povo nº1.
[28] Para citar alguns textos antigos que já continham críticas ao pós-modernismo/multiculturalismo: “PSTU tem um caso com os governistas” (Texto da Oposição CCI da UnB, 2009), “Nunca esqueçam a luta de classes” (Tese da Oposição Classista e Combativa da UFC, 2011).
[29] A Oposição Combativa, Classista e Independente (CCI) ao DCE da UnB foi uma organização de base impulsionada pela UNIPA em 2007. No ano de 2009 é, junto com a ADE-RJ, uma das organizações fundadoras da RECC e seu tipo de “oposição” se tornou um modelo para as demais oposições da RECC, sendo que a própria ADE-RJ muda sua denominação.
[30] A crítica anarquista revolucionária aos desvios no interior do anarquismo e do socialismo ao longo da história, em especial dos Makhnovistas e dos Durrutistas, foi um combate consciente ao reformismo e ao liberalismo ocasionados pela influência da pequena burguesia nas organizações.
[31] O crescimento do conservadorismo, com a sua compreensão parcial e elitista das massas, ainda que por vezes mais viva e real do que a própria esquerda, está muito relacionado a isso.
[32] A própria ideia de “trabalho de base” virou hoje um chavão na esquerda sobre a divulgação da coisa mais esdrúxulas que for entre o povo, ou seja, não levando em consideração uma análise materialista de quem é esse povo, suas necessidades e pensamentos.
[33] Uma importante contribuição sobre isso pode ser lida no artigo do intelectual Andrey Cordeiro Ferreira: “Lulismo, bolsonarismo e a crise brasileira: do desenvolvimento dependente a uma política autonômica” (2020).