Matéria do Jornal O Amigo do Povo, nº6, Julho/Agosto/Setembro de 2023.
Aurora
O Cerrado é o segundo maior bioma do Brasil, correspondendo a mais de 20% da cobertura vegetal do país, ele abriga as nascentes dos rios São Francisco e Araguaia-Tocantins, além dos principais afluentes das bacias Amazônica e do Prata, por conta desta característica alguns pesquisadores chegam a denomina-la como a “caixa d’agua do país”. Xavantes, Kraô-Kanela, Tapuias, Guarani Kaiowá, Terena, Xacriabas, Apinajé -, pescadores, ribeirinhos, quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, retireiros do Araguaia, vazanteiros, geraizeiros, sertanejos, acampados, assentados, são uma pequena amostra da diversidade de povos que habitam a região há mais de 12 mil anos.
Todo esse potencial hídrico combinado com uma geomorfologia favorável e um discurso de que existe um vazio demográfico fizeram com que o cerrado, de biodiverso, venha sendo cada vez mais substituído pelos desertos da monocultura, do agronegócio, das hidrelétricas e da mineração. As estimativas é que 40% da sua área original já tenha sido convertida em pastagens, campos de monocultura. Nos últimos anos essa devastação tem se intensificado e, em 2023, bateu recorde. Para se ter uma ideia do tamanho da devastação, em 2022 existiam 1886 áreas em alerta no Cerrado, em 2023 esse número subiu ainda no primeiro trimestre para 2133! No mês de maio de 2023 houve um aumento de 83% do desmatamento no Cerrado em relação ao mesmo mês do ano passado.
Existe uma tendência a melhorar? Infelizmente nada aponta para uma mudança substantiva. O governo Lula tem trabalhado em duas frentes contraditórias. De um lado evoca um discurso ambientalista defendendo um suposto “desmatamento zero” e, do outro, tem trabalhado intensamente no incentivo à indústria extrativa no Brasil (seja ela mineradora, energética ou o mesmo agroindustrial). Se observarmos os recentes projetos de escoamento da produção anunciados pelo governo (ferrovia norte-sul + ferrovia oeste-leste que vão atravessar o Cerrado), os dados do plano safra (que apontam quase 27% dos recursos destinados a médios e grandes produtores, totalizando mais de 364 bilhões de reais), vemos que a prática está na contramão do discurso ambientalista que o governo diz defender.
Para tentar dar uma resposta aos povos, que sofrem com o avanço do Capital, e atender as demandas ambientais internacionais, Lula vem se utilizando de uma oratória que busca diferenciar um “agronegócio ruim”, do “agronegócio bom”. O primeiro seria devastador, “fascista e direitista”, favorável ao desmatamento e que “acha bom ter arma em casa” (LULA, 2022) enquanto o segundo seria composto por “empresários sérios do agronegócio, que fazem negócios com Europa e China e não querem desmatar” (Lula, 2022). Nessa falsa dicotomia o governo mascara que o verdadeiro problema do desmatamento, da degradação ambiental e da concentração de terras, é o modelo agrário em si. Não existe um latifúndio bom e outro ruim, a não ser na falsa polarização burguesa! O agronegócio é em si um problema! Afinal ele tem como fundamento ser um modelo agrícola baseado em grandes extensões de terra voltadas para o lucro através da exportação. Isso tem como consequência inevitável a concentração fundiária, uma grande necessidade de água para irrigação e, via de regra, um enorme uso de agrotóxicos. Desmatando, desalojando, secando nascentes aqui o agronegócio socializa entre nós suas mazelas e privatiza os lucros em nome de uma pequena quantidade de empresas e acionistas.
É aproveitando esse Dia do Cerrado que chamamos a atenção para mais essa falsa polarização, que mascara os verdadeiros inimigos, e convocamos para que se empreenda uma verdadeira luta ambiental, ou melhor, socioambiental. Esta não deve se pautar em uma natureza abstrata representada apenas em dados distantes de desmatamento ou de “menor emissão de caborno”. Pelo contrário, ela deve estar combinada com uma perspectiva da luta pela desconcentração de terras, pela agricultura voltada para a vida e não para o lucro, por uma relação não predatória dos povos com a natureza. ■