Os revolucionários e a defesa da família trabalhadora

Publicada no Jornal O Amigo do Povo, nº9, Maio/Junho/Julho de 2024.

Antônio Galego.

O modelo de família tradicional, numa população majoritariamente cristã como a brasileira, é normalmente formada pelo pai e mãe, unidos por matrimônio, e por um ou mais filhos, compondo uma família nuclear ou elementar. No entanto, qualquer um que conheça um pouco a estrutura familiar nos bairros pobres do Brasil sabe que existe um abismo entre esse modelo idealizado da família tradicional e a multidão de jovens sem pais, criados pelas avós ou por mães solteiras, com familiares ausentes, drogados ou violentos. Na maior parte dos casos esse modelo tradicional não existe ou é muito fragilizado.

Apesar disso a “defesa da família” tem um grande apelo nas comunidades pobres, particularmente pelas mulheres. Avós e mães cumprem um papel central nas redes de apoio e resistência familiar e comunitária. Para além da defesa da família por um viés fundamentalista ou preconceituoso (estimulada por certos líderes políticos e religiosos), existe um fato material essencial: a família ainda é um núcleo social de apoio à sobrevivência em vários aspectos. Em momentos de crise (e o povo sabe melhor que ninguém disso) os familiares demonstram a sua importância. Por isso, é preciso entender que o povo e a juventude pobre defendem essa ideia como um desejo daquilo que eles gostariam de ter ou melhorar, uma reivindicação de um direito: ter uma família estruturada, feliz, ter um lar.

A direita conservadora entendeu isso e promete em todo lugar “defender a família”, entrando na alma popular, penetrando na realidade daqueles que clamam por um ambiente familiar e doméstico minimamente estruturados. Mas a incoerência e o oportunismo da direita é gigantesco, num dia afirmam “defender a família”, no outro defendem que um patrão deve ter o poder de demitir uma trabalhadora grávida; ou defendem a perda de direitos dos aposentados; reforçam a repressão policial que mata crianças nas periferias, etc. A defesa da família pelos políticos de direita é vazia e falsa, ela só ganha materialidade com certas práticas de apoio material e espiritual por parte de igrejas, mas ainda assim totalmente insuficientes.

Por outro lado, a esquerda liberal não consegue entender esse anseio das massas. Os militantes de esquerda ficam mais preocupados em criticar ou “desconstruir” as culturas e religiosidades populares, prestando contas a uma agenda identitária externa, do que ouvir o povo e compreender a realidade muito sofrida de famílias desestruturadas vivida pelas massas e pela juventude pobre. Não entendem que a “desconstrução” histórica das famílias brasileiras não ocorreu pela escolha livre das pessoas, mas pela imposição de condições econômicas e sociais degradantes. Assim, aos olhos do povo, a esquerda aparece como cúmplice e apologética da atual tragédia nos lares pobres. Ela é acusada pela direita de ser responsável por desestruturar as famílias e sequer consegue se defender ou ser entendida pelo povo.

De fato tanto direita como esquerda apresentam análises erradas e falsas soluções da questão familiar. Para além da “guerra” ideológica e eleitoreira, os governos de esquerda e de direita confluíram nas últimas décadas para uma política econômica neoliberal e militarista, a maior inimiga das famílias pobres. Sem estabilidade econômica, salarial, sem serviços públicos de qualidade, sem paz e cultura nos bairros, e outros direitos básicos, a família pobre viverá sempre problemas crônicos e situações extremas que impedirão um ambiente digno para desenvolver os potenciais individuais, familiares e das comunidades. Como diz o ditado popular: “casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão”. Se a origem do problema fosse “espiritual” ou, como diz a esquerda, de uma “cultura opressora”, seria mais fácil resolver. Nunca tivemos tantas igrejas e tanto debate público contra as opressões, mas os problemas familiares pioram a cada ano.

Por isso, os militantes classistas e revolucionários, aqueles que honestamente estão preocupados em servir ao seu povo, precisam incorporar ao seu programa a defesa da família trabalhadora, da família livre, não só no aspecto das discriminações, mas também das garantias materiais para uma existência digna, saudável e com capacidade de desenvolvimento das potencialidades individuais e coletivas, ou seja, incorporá-la na luta economia e política do proletariado. É preciso libertar a família trabalhadora das amarras econômicas e sociais que a esmagam e a desestruturam. Uma aposentadoria digna para os avós; segurança para as crianças brincarem na rua; pais e mães com empregos estáveis e salários dignos; tempo de lazer em família; etc. Muitos movimentos populares nos campos e favelas do Brasil (movimentos sem terra, sem teto, de mães na favela, etc.) demonstraram que a família trabalhadora não apenas deve ser defendida mas ela pode servir de base organizacional de movimentos de massa contra o Estado e o Capital. ■

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