A continuação do conflito entre Malatesta e os Plataformistas em 1930

Publicado no Jornal O Amigo do Povo, nº8, Fevereiro/Março/Abril de 2024.

Antonio Galego

Nestor Makhno com Ida Mett, Arshinov e outros camaradas não identificados.

Para defender uma suposta harmonia dentro do “movimento anarquista” muitos até hoje omitem ou minimizam profundas divergências existentes. Uma delas é a que surgiu com a publicação da Plataforma Organizacional escrita por Makhno, Arshinov, Ida Mett e outros em 1926. A Plataforma estabelecia bases para a reorganização do anarquismo revolucionário. Suas ideias receberam uma forte oposição de setores anarco-comunistas, entre eles Errico Malatesta.

No Brasil existe o mito de que um erro de tradução na correspondência Makhno-Malatesta teria gerado um “mal-entendido”. Outro mito é que posteriormente Malatesta teria se reconciliado com os plataformistas. Ambos são falsos. O foco aqui é analisar a correspondência que Malatesta realizou posteriormente com plataformistas franceses, às vésperas do congresso da União Anarquista Comunista Revolucionária (UACR) em 1930.

O diálogo entre Malatesta e o grupo plataformista francês

Vamos a principal “prova” da reconciliação: a carta de Malatesta de 10 julho de 1930 endereçada a um grupo local da UACR (Grupo do 18° distrito de Paris). Já na observação introdutória do órgão que publicou a carta, Studi sociali, este diz claramente: “Com esta carta Malatesta reconfirma a sua opinião sobre o conceito de ‘responsabilidade coletiva’ das organizações”, ou seja, já reconhece que não houve mudança na posição de Malatesta.

Para os seus defensores a prova do entendimento entre as partes estaria nessa passagem de Malatesta: “estou vendo confirmada a minha esperança de que sob diferenças de linguagens se encerra verdadeiramente uma identidade de propósitos”. Na tradução em português desse texto a palavra “encerra” (nasconde, em italiano) está errada, dando um sentido de “fim” à polêmica, quando ela significa “esconde”, muito menos forte. Mas isso é o de menos.

Logo após essa passagem, Malatesta insiste em negar a ideia de responsabilidade coletiva e convencer o grupo a abandonar o conceito: “porque insistir numa expressão que é contrária ao objetivo de clarificação e que é uma das causas do mal-estar provocado pela “Plataforma”? Porque não falar como todos os outros, de modo a serem compreendidos e a não criar equívocos? A responsabilidade moral (pois no nosso caso não pode senão tratar-se de responsabilidade moral) é individual pela sua própria natureza”. Ou seja, a concordância anterior era apenas um artifício retórico.

A resposta do grupo de Paris veio em abril de 1930 com o título “Novamente sobre a responsabilidade coletiva”. No início o grupo reconhece que Malatesta tenha concordado com a “ideia”, apesar de recusar a “expressão”. Mas, como veremos, também se utilizam de retórica. Logo depois o grupo faz uma explicação do conceito defendido por eles, e interrogam as intenções de Malatesta: “Mas já que ele se declara satisfeito com o nosso conceito organizacional, por que persiste em nos taxar com linguagem imprópria?”.

Em relação a explicação “individual” e “moral” dada por Malatesta, o grupo mantém a polêmica:

“Malatesta diz-nos: a responsabilidade moral é de natureza individual; se alguém não cumprir os seus compromissos e, como resultado, causar o fracasso de um negócio, ele é o único responsável por isso e não a coletividade. Concordamos plenamente. Mas este raciocínio, correto em teoria, tem deficiências na prática. Na verdade, cada membro de uma organização que atua em seu nome compromete toda a organização. Basta que ele seja enviado pela organização para que suas palavras e ações adquiram imediatamente um alcance que supera em muito o do indivíduo. A organização em que atua será sempre responsabilizada, quer ele queira ou não, a menos que se distancie publicamente e como um todo. Em suma, a responsabilidade individual e a responsabilidade coletiva, longe de se excluírem, entrelaçam-se e complementam-se.”

Ou seja, o grupo plataformista mantêm intacta a sua posição, e, apesar do aparente “entendimento entre as partes” o grupo finaliza a carta com um tom provocativo:

“Não tenhamos medo das palavras; basta explicar claramente a interpretação que lhes damos, para evitar confusões, para que, com razão, contra a tradição, retomemos a nossa fórmula. Uma ação coordenada por elementos confiantes que compreenderam e aceitaram livremente um programa claro e preciso, é isso que o princípio da responsabilidade coletiva implica para nós. E desta vez estamos todos de acordo, não é, camarada Malatesta?”

A mensagem de Makhno ao Congresso da UACR

Makhno também se pronunciou no mesmo contexto. Em seu texto “Ao Congresso da União Anarquista Comunista Revolucionária” (1930), Makhno se centra quase inteiramente na crítica das posições desorganizadoras dos seguidores de Malatesta, na defesa da responsabilidade coletiva e da unidade tática:

“É verdade que em suas fileiras [da UACR], como nas do nosso movimento em muitos outros países, há muitos camaradas mergulhados no dogmatismo que, em concordância com o panfleto ‘Anarquismo e Organização’ do nosso velho camarada Errico Malatesta, querem aplicar ideias e táticas inadequadas ao anarquismo revolucionário moderno e proclamar que qualquer membro de uma organização anarquista pode usar as táticas que quiser. Talvez esses camaradas pretendam trabalhar nessa direção durante o congresso e, se esse for o caso, o congresso certamente não alcançará nada de positivo no que diz respeito à retificação de nosso movimento e acabará repetindo velhas ideias…”

Ou seja, tanto Malatesta quanto Makhno buscaram influenciar/disputar o congresso da UACR em 1930. Mas eram linhas diferentes! Mais do que isso, eram rivais. A linha plataformista foi derrotada nesse congresso.

Makhno e os plataformistas jamais abandonaram o seu projeto, e Malatesta jamais aderiu a esse projeto – algum dos lados ceder seria a única forma real para indicar um “acordo” afinal entre ambos. O que teria ocorrido se, de fato, Malatesta aderisse à Plataforma e convocado a sua construção?! Mas a prática é o critério da verdade, e isso não ocorreu. Aliás, a Plataforma é muito maior do que o debate (importante, mas rebaixado) sobre responsabilidade coletiva.

Aprender com o legado e a mensagem do Plataformismo

Devemos olhar as lutas e experiências do passado e extrair as suas lições. Numa perspectiva revolucionária a Tese Plataformista está correta e a Tese Malatestiana está errada. Não são iguais, nem parecidas. Reconhecer isso abre a possibilidade de aprender, incorporar e avançar na luta, para além do próprio plataformismo. Omitir é ficar estagnado no pântano das complacências e dogmatismos do “clubinho libertário”. A maioria dos anarquistas está apegada ao dogmatismo libertário. A linguagem vem antes das tarefas revolucionárias; a ideia vem antes da realidade. Ter um espírito anti-dogmático, inovador, corajoso, concreto, é um importante legado do Plataformismo aos socialistas revolucionários do Brasil. ■

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