Caso Marielle: o aumento da violência política e os riscos da militância

Publicada no Jornal O Amigo do Povo, nº9, Maio/Junho/Julho de 2024.

J. C. Ramos.

Em uma rua da zona central da cidade do Rio de Janeiro, um Chevrolet Cobalt prata se aproxima de um veículo ocupado e atira várias vezes. Uma mulher e um homem são gravemente feridos, a mulher recebe 3 tiros fatais na cabeça, o motorista é alvejado nas costas. Ambos faleceram no local. A terceira pessoa somente é ferida pelos estilhaços. Foi assim que numa noite de 2018, a vereadora Marilene Franco, do PSOL do Rio de Janeiro, e Anderson Gomes foram brutalmente assassinados.

No dia 24 de março de 2024, cinco anos após os trágicos assassinatos, o deputado federal Chiquinho Brazão, União Brasil-RJ, e seu irmão, Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, foram detidos e acusados de serem os mandantes do crime. No mesmo dia, Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, também foi preso como mentor. As prisões não só lançaram luz ao caso, mas reafirmaram o que já era sabido, o Estado brasileiro é um reduto de corruptos e mafiosos, assim como a política brasileira sempre foi ditada pelo poder da violência.

O crime não apenas abalou a política e a sociedade brasileira, mas também destacou os perigos enfrentados por quem decide se envolver com a atividade política em nosso país. Quando uma pessoa pública e com mandato no poder legislativo é assassinada dessa forma covarde, isso diz muito mais sobre os riscos que correm militantes comuns, sem nenhuma blindagem institucional, do que os riscos que correm os parlamentares no Brasil. Contudo, um fato incontestável é que a violência é uma das principais questões determinante na realidade brasileira, seja como ferramenta política ou não, porém parece não ser levada a sério pela maioria das organizações políticas em suas práxis militantes.

Se a máxima da Federação Anarquista Uruguaia, na década de 70, afirmava que não existe luta revolucionária sem solução da questão da violência, ou seja, solução entendida como organização da autodefesa como resposta à repressão. No Brasil, é coerente afirmar que não existe possibilidade de trabalho de base junto às massas sem resolver a questão da violência. No entanto, a resolução deste problema não se dará nem pelo denuncismo da esquerda institucional, nem pela ação policial e muito menos através do esquerdismo autonomista e seus ensaios performáticos de autodefesa (black bloc, protoganguismo antifa ou grupos de treinos coletivos de artes marciais). O problema da violência no Brasil chegou a outro patamar e nenhuma das atuais práticas da esquerda contra o problema poderá evitar o tombamento de mais companheiros e companheiras executados por tiros nesse cenário belicoso.

A construção de qualquer programa ou projeto político requer uma análise cuidadosa da realidade, a fim de identificar as demandas, contradições e limitações. No contexto brasileiro, a abordagem da questão da violência, partindo de uma perspectiva classista, objetivando ganhar influência sobre a população, perpassa esses três pontos. Ignorar isso no dia a dia do fazer política, como faz a esquerda institucional, ou lidar com o problema por meio de soluções superficiais, como faz o esquerdismo autonomista, é um atestado de óbito ou, simplesmente, e na maioria das vezes, um atestado da falta de inserção popular. Porém, hoje com a polarização ideológica e a ampliação do acesso a armas de fogo, a violência política também bate à porta daqueles limitados politicamente às camadas médias.

Casos como o de Marielle e Anderson irão se repetir, assim como semanas atrás se repetiu com a execução do jovem ativista indigena Hariel, espancado e executado a tiros dentro de uma Terra Indígena que está sob disputa em Santa Catarina. Por isso, notícias como as seguintes deveria render muito mais que denúncias nas redes sociais: “Número de armas dobra e chega a quase 3 milhões no Brasil”; “Ocupação Marighella é invadida por homens armados”; “Número de CACs supera o de policiais”; “Brasil foi 2º país mais letal para ambientalistas em 2022”; “Em 2024 conflitos no campo atingem maior número já registrado desde 1985”; “Homens ateiam fogo na Ocupação Anita Garibaldi”; “Avança a expansão das milícias no Brasil”; “MP mira empresas de ônibus de SP que seriam ligadas ao PCC”; “Pelo menos 84 candidatos nas eleições foram assassinados durante as campanhas em 2020”; “Grupo com símbolo nazista faz disparos e ameaça estudantes negros em bar próximo a Unicamp”.

A transição do modelo fordista para o ultraflexível resultou em uma crise econômica que reduziu significativamente a demanda por trabalhadores fabris. Essa crise, por sua vez, desencadeou duas outras crises: a agrária e a urbana. A crise agrária surgiu da necessidade de monopolizar terras para a produção de commodities, resultando no deslocamento dos trabalhadores do campo para áreas urbanas. Como resultado dessa interação, a crise urbana se intensificou, evidenciada pelo aumento das favelas e aglomerados urbanos. Os territórios urbanos já não são apenas alvo do controle social via repressão policial, mas também da extração de capital por meio da venda de serviços e produtos. Como consequência, a disputa política nos territórios urbanos tornou-se tão crucial quanto nos locais de trabalho, sendo impossível neles ignorar a questão da violência. ■

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